Recentes posicionamentos brasileiros nos fóruns multilaterais têm negado parâmetros já consolidados no âmbito internacional e formalizados em diversos tratados internacionais vigentes de que o Brasil é signatário. Um exemplo contundente da nova agenda brasileira é o ataque à “ideologia de gênero”, expressão utilizada pela ala política do presidente brasileiro para opor medidas de ensino e promoção da igualdade de gênero, a luta contra a discriminação por conta de orientação sexual e por direitos reprodutivos. 47Outro exemplo é a agenda antiambientalista do governo brasileiro que desqualifica evidências científicas sobre o aquecimento global e prioriza a exploração econômica frente à preservação ambiental. 48
Essas agendas, quando tratadas em meio à política externa, também constituem política pública. 49Como tal, podem e devem ser objeto de escrutínio público e controle democrático. Assim, constituem uma primeira esfera prática de aplicação dos conhecimentos de direito internacional. Para o escrutínio da política externa, o conhecimento da linguagem e da técnica do direito internacional têm papel fundamental para evitar retrocessos na garantia e na proteção de direitos garantidos internacionalmente mas com efeitos locais.
Uma segunda esfera prática lida com os espaços das instituições internacionais como forma de trazer visibilidade para questões nacionais para buscar apoio na pressão internacional. Exemplo recente nessa esfera foi a nota informativa apresentada ao Tribunal Penal Internacional por um coletivo de advogados e uma comissão de personalidades brasileiras em defesa de direitos humanos. A nota denunciou como crimes contra a humanidade o quadro de uso sistemático de discursos discriminatórios das populações indígenas, falas legitimadoras de violações ambientais e paralelo ataque à participação da sociedade civil no ambiente democrático, gerando um contexto de insegurança, aumento de violência e do desflorestamento. 50
Ainda que seja um plano de ação mais comum quando se pensa na prática dos internacionalistas e bastante significativo em alguns casos, acionar instituições internacionais pode não levar a resultados expressivos ou imediatos diante do descrédito em relação às instituições internacionais do chamado “combate ao globalismo” —valores liberais reconhecidos pelo governo e seus apoiadores como ameaça aos valores cristãos e de direita. 51
Se o quadro político brasileiro atual é pouco receptivo a argumentos de apelo universalista do internacionalismo liberal, o ordenamento jurídico nacional é uma saída possível para respaldar a proteção e a garantia de direitos. 52Assim, uma terceira esfera prática requer certa expertise dos juristas em vincular o direito internacional aos outros níveis regulatórios que compõem o ordenamento jurídico nacional. Para citar um caso ocorrido em âmbito estadual —porque manifestações de ataque democrático não têm ocorrido apenas a nível federal —, o governador de São Paulo ordenou recolhimento de apostilas didáticas usadas nas escolas estaduais por conter “apologia à ideologia de gênero”. O material trazia explicações sobre a diferença entre sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. 53
Para a devolução das apostilas, um coletivo de advogados, em nome de um grupo de professores da rede pública paulista, apresentou ação coletiva. A petição trazia as previsões da Constituição brasileira de efetivação ao direito à educação, garantido o pluralismo de ideias, foram apresentadas com reforço das previsões internacionais da Declaração Universal de Direitos Humanos, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 54
Um outro exemplo nessa mesma esfera se liga à história brasileira — compartilhada com outros países latino-americanos— de anistia por crimes cometidos durante a ditadura militar. Como é amplamente divulgado pela mídia brasileira e internacional, o presidente da república e alguns de seus apoiadores elogiam a ditadura militar brasileira e militares envolvidos em casos comprovados de tortura e desaparecimento forçado. 55Nessa linha, o presidente chegou a se manifestar oficialmente dando aval ao corpo das forças armadas para comemoração do golpe militar de 1964. 56É clara, nesse caso, a importância de se mobilizar os termos da condenação do Brasil pela Corte Interamericana, com reforço das medidas de não repetição. 57Esse ponto foi inclusive central para a ação ajuizada pela Defensoria Pública para impedir que verbas públicas fossem alocadas para manifestações desse tipo. 58
Desde sua campanha eleitoral, o atual presidente brasileiro mencionava como um dos pontos centrais de sua agenda de governo o estabelecimento do excludente de ilicitude de atos por parte dos “agentes da lei” como medida de aumento de segurança no país. 59Recentemente o presidente brasileiro enviou ao Congresso projeto de lei que regulamenta o excludente de ilicitude para agentes civis e militares em meio a operações de garantia da lei e da ordem — o momento da proposta coincide com protestos em outros países da América Latina que poderiam “chegar” ao Brasil. 60
Em um dos primeiros posicionamentos institucionais contra o projeto, o Ministério Público Federal demonstrou a incompatibilidade do projeto de lei para excludente de ilicitude. 61Em sua nota técnica, reforçou a previsão constitucional da capacitação das polícias para causar o menor dano possível e a proteção das liberdades de manifestação, expressão, reunião. Também trouxe o direito internacional para demonstrar a proibição de execuções extrajudiciais, sumárias e arbitrárias. 62
É menos usual pensar no jurista internacionalista como um profissional que atua no âmbito interno aos estados. Quando Anthea Roberts comenta sobre internacionalistas com experiência de advocacia local, por exemplo, a autora menciona que essa prática geralmente envolve “apresentar argumentos dentro do sistema jurídico nacional”. 63Certamente essa imagem descreve bem a maior parte dos casos defendidos nas cortes brasileiras, que normalmente se baseiam no próprio direito brasileiro. Contudo, ao se pensar o binômio do uso do direito nacional no âmbito interno e do direito internacional no âmbito internacional, perde-se de vista um aspecto importante de poder argumentativo do direito internacional, que é sua internalização e implementação no âmbito local; um aspecto especialmente relevante num quadro de retorno do nacionalismo e populismo, além do enfraquecimento do poder de persuasão das instituições internacionais.
Sem entrar no mérito das discussões atuais sobre como o próprio internacionalismo liberal contribuiu para a criação das condições que levam à esse quadro de retorno do nacionalismo e populismo na contemporaneidade, 64o que se busca argumentar aqui é que uma visão estanque entre os espaços de prática nacional e internacional não permite enxergar experiências que unem o internacional e o nacional na dimensão local. O contexto brasileiro atual explorado anteriormente apresenta casos em que o direito internacional pode ser articulado de forma criativa e estratégica juntamente ao direito brasileiro para garantir a proteção aos direitos humanos e a conservação do espaço democrático no país. Pensar a prática do direito internacional como ligada somente às cortes e tribunais internacionais, mecanismos quasi-jurisdicionais de resolução de controvérsias e grandes firmas internacionais de advocacia invizibiliza a possibilidade de analisar as diversas maneiras pelas quais o local se acopla ao internacional em processos complexos de transformação, ordenação e governança. 65
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