Por tradição antiga, desde que a residência do vice-presidente tinha sido mudada para o recinto do Conservatório Naval, os criados domésticos eram sargentos filipinos em serviço ativo na Armada dos EUA. De elegantes blazers azuis com uma tira bordada onde se lia «vice-presidente dos Estados Unidos», estavam naquele momento a servir café. A maioria dos participantes na reunião de todo o dia para a seleção dos tripulantes não tinham sido convidados para aquela sessão informal noturna.
Fora singular destino de Seymour Lasker ser o primeiro Primeiro Cavalheiro da América. Ele carregava o fardo — as caricaturas dos jornais, as piadas lisonjeadoras e os chistes espirituosos de que nenhum homem chegara onde ele chegara — com tal franqueza e boa disposição que, por fim, a América conseguiu perdoar-lhe o fato de ter casado com uma mulher com o atrevimento de imaginar que seria capaz de dirigir metade do mundo. Lasker pusera a esposa e o filho adolescente do vice-presidente a rir à gargalhada quando a presidente conduziu Der Heer para um anexo adjacente à biblioteca.
— Muito bem — começou. — Hoje não temos nenhuma decisão oficial a tomar, nem nenhum comunicado público das nossas deliberações a fazer. Mas vejamos se podemos elaborar uma súmula. Não sabemos o que a maldita Máquina fará, mas é razoável supor que vá a Vega. Ninguém faz a mínima idéia de como isso funcionará nem sequer de quanto tempo levará. Diga-me outra vez, a que distância fica Vega?
— Vinte e seis anos-luz, senhora Presidente.
— Portanto, se esta Máquina fosse uma espécie de nave espacial e pudesse viajar à velocidade da luz — eu sei que não se pode viajar à velocidade da luz, só próximo dela, não me interrompa —, levaria vinte e seis anos para chegar lá, mas só do modo como medimos o tempo aqui na Terra. É assim, Der Heer?
— É. Exatamente. Talvez mais um ano para atingir a velocidade da luz e um ano para desacelerar e entrar no sistema de Vega. Mas, do ponto de vista dos membros da tripulação, levaria muito menos tempo. Talvez apenas uns dois anos, dependendo da proximidade da velocidade da luz a que viajassem.
— Para um biólogo, Der Heer, tem andado a aprender muita astronomia.
— Obrigado, senhora Presidente. Tentei mergulhar no assunto.
Ela fitou-o apenas um momento e depois prosseguiu:
— Portanto, desde que a Máquina viaje a uma velocidade muito próxima da luz, poderá não ter importância a idade dos membros da tripulação. Mas se levar mais dez ou vinte anos — e você diz que isso é possível —, então precisamos de ter alguém jovem. Ora os Russos não estão a dar crédito a este argumento. Sabemos que a escolha vai ser entre Arkhangels e Lunacharsky, ambos sexagenários.
Lera os nomes com certa dificuldade numa ficha que tinha à sua frente.
— É, quase certo que os Chineses vão enviar Xi, também sexagenário. Por conseqüência, se eu pensasse que eles sabem o que estão a fazer, sentir-me-ia tentada a dizer: «Com os diabos, mandemos um homem de sessenta anos!»
Der Heer sabia que Drumlin tinha exatamente sessenta anos.
— Por outro lado… — começou a argumentar.
— Bem sei, bem sei. A doutora indiana. Essa tem quarenta e tal anos… De certo modo, esta é a coisa mais estúpida de que já ouvi falar. Estamos a escolher alguém para participar nos Jogos Olímpicos e não sabemos quais vão ser as provas. Também não sei por que motivo estamos a falar em enviar cientistas. O Mahatma Gandhi, aí está quem deveríamos enviar. Ou, já que estamos com a mão na massa, Jesus Cristo. Não me diga que eles não estão disponíveis, Der Heer. Eu sei isso.
— Quando não sabemos quais são as provas, mandamos um campeão do decatlo.
— E depois descobrimos que as provas são xadrez, ou oratória, ou escultura, e o nosso atleta fica em último lugar. Está bem, você diz que deve ser alguém que tenha pensado na vida extraterrestre e que tenha estado intimamente envolvido na recepção e na decifração da Mensagem.
— Pelo menos uma pessoa assim estaria intimamente informada do modo como os Veganianos pensam. Ou, pelo menos, do modo como eles julgam que nós pensamos.
— E, no tocante a gente verdadeiramente do topo, diz que isso reduz o campo a três pessoas.
Consultou de novo os seus apontamentos.
— Arroway, Drumlin e… aquele que julga ser um general romano.
— O doutor Valerian, senhora Presidente. Não sei se ele julga que é um general romano; trata-se apenas do seu nome.
— Valerian nem sequer responderia ao questionário do Comitê Selecionador. Não consideraria a escolha porque não deixaria a mulher. Não é isso? Não estou a criticá-lo. Não é parvo. Sabe fazer funcionar um relacionamento. Não se trata de a mulher ser doente, ou coisa do gênero, pois não?
— Não. Que eu saiba, ela goza de excelente saúde.
— Ótimo. Ótimo para eles. Mande-lhe um bilhete pessoal a minha parte… qualquer coisa no sentido de ela ser uma mulher e tanto, para um astrônomo a preferir ao universo. Mas tenha cuidado com a linguagem, Der Heer. Você sabe o que eu quero. E atire-lhe com algumas citações. Poesia, talvez. Mas não demasiado lamecha. — Acenou-lhe com o indicador esticado. — Esses Valerians podem ensinar-nos alguma coisa. Por que não os convidamos para um jantar importante? O rei do Nepal vem cá daqui a duas semanas. Será boa altura.
Der Heer estava a escrever apressadamente. Tinha de telefonar para casa da secretária dos convites da Casa Branca assim que a reunião terminasse e precisava de fazer um telefonema ainda mais urgente.
Havia horas que não conseguia aproximar-se sequer do telefone.
— Restam portanto a Arroway e o Drumlin. Ela é uns vinte anos mais nova, mas ele está numa forma física espantosa. Voa em hang-glider, pratica aquele pára-quedismo em que evolucionam em queda livre antes de abrirem o pára-quedas, pratica mergulho aquático autônomo… é um cientista brilhante, ajudou muito a decifrar a Mensagem e passará um bom bocado a discutir com todos os outros velhos. Não trabalhou em armas nucleares, pois não? Não quero mandar ninguém que tenha trabalhado em armas nucleares.
«Claro que a Arroway também é uma cientista brilhante. Dirigiu todo este Projeto Argus, conhece todos os pormenores da Mensagem e tem uma mente inquiridora. Toda a gente diz que os seus interesses são muito vastos. E daria uma imagem americana mais jovem.
Fez uma pausa.
— E você gosta dela, Ken. Não há nada de mal nisso. Eu também gosto dela. Mas às vezes destrambelha-se. Ouviu com cuidado o seu questionário?
— Julgo saber a que passagem se está a referir, senhora Presidente. Mas a Comissão Selecionadora estava a fazer-lhe perguntas havia quase oito horas, e por vezes ela irrita-se com o que considera perguntas estúpidas. O Drumlin também é assim. Talvez ela tenha aprendido com ele. Foi sua aluna durante algum tempo, como sabe.
— Sim, ele também disse algumas coisas idiotas. Olhe, parece que está aqui tudo gravado para nós neste VCR. Primeiro o questionário da Arroway e depois o de Drumlin. Carregue no botão de ligar, Ken.
No écran da televisão via-se Ellie a ser entrevistada no seu gabinete do Projeto Argus. Ele conseguiu mesmo distinguir o bocado de papel já amarelecido com a citação de Kafka. No fim de contas, tomando todas as coisas em consideração, talvez Ellie fosse mais feliz se tivesse recebido apenas silêncio das estrelas. Tinha vincos à volta da boca e papos debaixo dos olhos. Viam-se também dois sulcos verticais, que não eram habituais, na sua fronte, mesmo por cima do nariz. Em vídeotape, Ellie parecia terrivelmente fatigada e Der Heer sentiu uma punhalada de culpa.
— … que penso da «crise populacional do mundo»? — dizia Ellie. — Quer saber se sou contra ou a favor? Acha que se trata de uma pergunta-chave que me vão fazer em Vega e quer ter a certeza de que dou a resposta certa? Muito bem. É por causa do excesso de população que sou a favor da homossexualidade e do clero celibatário. Um clero celibatário é uma idéia particularmente boa, porque tem tendência para suprimir qualquer propensão hereditária para o fanatismo.
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