— Essa é uma visão generosa e nobre do mundo, sem dúvida, e eu seria o último a negar que existe bondade no coração humano: Mas quanta crueldade não foi cometida quando não existia o amor de Deus?
— E quanta crueldade quando havia? Savonarola e Torquemada amavam Deus, ou assim diziam. A sua religião parte do princípio de que as pessoas são crianças e precisam de um papão para se comportarem bem. Vocês querem que as pessoas acreditem em Deus para obedecerem à lei e o único modo que lhes ocorre: uma severa força policial secular e a ameaça do castigo de um deus que tudo vê para compensar tudo quanto escapa aos olhos da polícia. Avaliam muito por baixo dos seres humanos.
«Palmer, você pensa que, se não tive a sua experiência religiosa, não posso apreciar a magnificência do seu deus. Mas trata-se precisamente do contrário. Eu escuzo-o e penso: o deus dele é demasiado pequeno! Um mísero planeta, uns poucos milhares de anos… isso dificilmente merece a atenção de uma divindade menor, quanto mais do Criador do universo.
— Está a confundir-me com outro pregador qualquer. Aquele museu era território do Irmão Rankin. Eu estou preparado para um universo com milhares de milhões de anos de idade. Digo apenas que os cientistas não o provaram.
— E eu digo que você não compreendeu as provas. Como pode ser benéfico para as pessoas se a sabedoria convencional, as «verdades» religiosas, são uma mentira? Quando acreditar realmente que as pessoas podem ser adultas, pregará um sermão diferente.
Seguiu-se um breve silêncio, pontuado apenas pelo eco dos seus passos.
— Peço desculpa se fui um pouco contundente demais. Acontece-me de vez em quando.
— Dou-lhe a minha palavra, doutora Arroway, de que refletirei cuidadosamente no que disse esta noite. Suscitou algumas questões para as quais preciso de resposta. Mas, no mesmo espírito, permita que lhe faça algumas perguntas. De acordo?
Ela acenou afirmativamente e ele prosseguiu:
— Pense na sensação que causa a percepção, na sensação que causa neste momento. Causa a sensação de milhares de milhões de minúsculos átomos a debaterem-se para ocupar o seu lugar? E, para além da engrenagem biológica, onde, na ciência, pode uma criança aprender o que é o amor? Aqui tem…
O beeper de Ellie soou. Provavelmente era Ken com a notícia por que esperava. Se era, fora uma reunião muito longa para ele. Mas talvez, apesar disso, as notícias fossem boas. Olhou para as letras e para os números que se formavam no cristal líquido: o número do telefone do escritório de Ken. Não havia cabinas telefônicas à vista, mas, decorridos poucos minutos, conseguiram arranjar um táxi.
— Lamento ter de me ir embora tão subitamente — desculpou-se Ellie. — Gostei da nossa conversa e pensarei muito a sério nas suas perguntas… Queria fazer mais uma, não queria?
— Queria. O que existe nas normas da ciência que impeça um cientista de fazer mal?
CAPÍTULO XV
Cubo de érbio
A Terra, isso basta,
Não quero as constelações mais perto,
Sei que estão muito bem onde estão,
Sei que bastam àqueles que lhes pertencem
WALT WHITMAN. Leaves of Grass. Song of the Open Road. (1855)
Levou anos, foi um sonho tecnológico e um pesadelo diplomático, mas, por fim, decidiram construir a Máquina. Foram propostos vários neologismos e nomes de projeto evocativos de mitos antigos. Mas desde o princípio que toda a gente lhe chamara simplesmente a Máquina, e essa tornou-se a sua designação oficial. As continuadas, complexas e delicadas negociações internacionais eram descritas por editorialistas ocidentais como «Política da Máquina». Quando se conseguiu fazer o primeiro cálculo fundamentado do custo total, até os titãs da indústria aeroespacial perderam o fôlego. Eventualmente, ascendeu a meio bilhão de dólares por ano durante alguns anos, aproximadamente um terço do orçamento militar total — nuclear e convencional — do planeta.
Havia receio de que a construção da Máquina arruinasse a economia mundial. «Guerra econômica desencadeada por Vega?» perguntava o Economist, de Londres. As parangonas diárias de The New York Times eram, de qualquer ponto de vista desapaixonado, mais singulares e estranhas do que quaisquer outras do agora defunto National Enquirer, uma década atrás.
Os registros mostrarão que nenhum médium, vidente, profeta ou adivinho, nenhuma pessoa que se proclamasse possuidora de aptidões pré-cognitivas, nenhum astrólogo, nenhum numerólogo e nenhum copywriter de fins de Dezembro sobre «O Ano Que Vem» predissera a Mensagem ou a Máquina — e muito menos Vega, números primos, Adolf Hitler, os Jogos Olímpicos e todo o resto. Houve, no entanto, muitos que afirmaram ter previsto claramente os acontecimentos, mas, descuidadamente, terem negligenciado escrever a pré-cognição. Predições de acontecimentos surpreendentes revelam-se sempre mais exatas quando não são registradas de antemão no papel. É uma daquelas singulares regularidades da vida quotidiana. Muitas religiões encontravam-se numa categoria ligeiramente diferente: uma leitura atenta, cuidadosa e imaginativa dos seus escritos sagrados revelaria, argumentavam, uma previsão clara daqueles extraordinários acontecimentos.
Para outros, a Máquina representava uma sorte grande potencial para a indústria aeroespacial do mundo, que se encontrava em preocupante declínio desde que os Acordos de Hiroxima tinham entrado plenamente em vigor. Eram muito poucos os sistemas de armas estratégicas que estavam em desenvolvimento. Os habitats no espaço constituíam um negócio crescente, mas mal compensavam a perda das estações orbitais de combate laser e outros componentes da defesa estratégica encarada por uma administração anterior. Assim, alguns dos que se preocupavam com a segurança do planeta, se a Máquina fosse construída, tiveram de engolir os escrúpulos perante as implicações de mais postos de trabalho, lucros e promoções de carreiras.
Algumas fontes bem colocadas argumentavam não haver perspectiva mais rica para as indústrias de alta tecnologia do que uma ameaça do espaço. Teria de haver defesas, radares e vigilância imensamente potentes, eventuais postos avançados em Plutão ou na Nuvem do Cometa Oort. Não havia argumentação acerca das disparidades militares entre terrestres e extraterrestres capaz de intimidar tais visionários. «Mesmo que não consigamos defender-nos contra eles», perguntavam, «não querem que os vejamos vir?» Havia lucro nisso; e eles farejavam-no. Estavam a construir a Máquina, evidentemente, uma construção que atingia valores da ordem dos bilhões de dólares; mas a Máquina seria apenas o princípio se eles jogassem bem as suas cartas.
Uma inverossímil aliança política aglutinou-se por trás da reeleição da presidente Lasker, que se transformou, na realidade, num referendo nacional quanto a construir ou não a Máquina. O seu opositor advertiu quanto a Cavalos de Tróia, a Máquinas do Fim do Mundo e à perspectiva de desmoralização do engenho americano perante os alienígenas que já tinham «inventado tudo». A presidente declarou-se confiante em que a tecnologia americana estaria à altura do desafio e deu a entender, embora o não dissesse de fato, que o engenho americano viria eventualmente a igualar tudo quanto eles tinham em Vega. Foi reeleita por uma margem respeitável, mas de modo nenhum avassaladora.
As próprias instruções foram um fato decisivo. Tanto no manual sobre linguagem e tecnologia básica, como na Mensagem sobre a construção da Máquina, nada era confuso ou pouco claro. Algumas vezes, passos intermédios que pareciam absolutamente óbvios eram descritos com uma minúcia enfadonha — como quando, nas bases da aritmética, se prova que, se duas vezes três é igual a seis, então três vezes dois também é igual a seis. Em todos os estádios da construção havia espaços de conferência: o érbio produzido por este processo deve ser noventa e seis por cento puro, não conter mais do que uma fração da percentagem de impureza das outras terras raras. Quando o componente trinta e um estiver concluído e for colocado numa solução molar seis de ácido hidrofluorídrico, os elementos estruturais remanescentes deverão parecer-se com o diagrama da figura seguinte. Quando o componente quatrocentos e oito for montado, a aplicação de um campo magnético transversal de dois megagauss deverá fazer girar o rotor até tantas revoluções por segundo antes de ele voltar a um estado de imobilidade. Se algum dos testes falhava, voltava-se atrás e refazia-se tudo do princípio.
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