— Tem a certeza de que não quer uma bebida? Pessoalmente não bebo, mas há tanta gente que bebe… — Ellie voltou a declinar. — Não, não vejo outras possibilidades. Agora é a minha vez?
«Olhe, quero pedir-lhe uma coisa. Mas não tenho jeito para pedir coisas. Nunca tive. A minha imagem pública é rica, cômica, inescrupulosa — alguém que procura fraquezas no sistema para poder ganhar umas coroas depressa. E não me diga que não acredita em nenhuma dessas coisas. Toda a gente acredita, pelo menos nalgumas. Provavelmente já ouviu dizer parte do que vou contar-lhe, mas dê-me dez minutos e eu digo-lhe como tudo isto começou. Quero que saiba alguma coisa a meu respeito.
Ellie recostou-se na cadeira, a perguntar a si mesma que poderia ele querer dela, e afastou do pensamento fantasias tolas em que entravam o Templo de Ishtar, Hadden e talvez um auriga ou dois, pelo sim, pelo não.
Anos antes, ele inventara um módulo que, quando a televisão comercial aparecia, emudecia automaticamente o som. Ao princípio, não era um dispositivo de reconhecimento de contexto. Ao invés, monitorizava simplesmente a amplitude da onda transportadora. Os anunciantes da TV tinham adquirido o hábito de passar os seus anúncios mais alto e com maior audiolimpidez do que os programas que eram os seus veículos normais. A notícia do módulo de Hadden propagou-se de boca em boca. As pessoas confessaram um sentimento de alívio, a libertação de um grande peso, até mesmo uma sensação de alegria por se verem livres da barragem publicitária das seis a oito horas por dia que o americano médio passava defronte do televisor. Antes que pudesse haver qualquer reação coordenada da indústria de publicidade televisiva, o Adnix tornara-se tremendamente popular. Obrigava anunciantes e cadeias de televisão a novas opções de estratégia de onda transportadora, a cada uma das quais Hadden replicava com uma nova invenção. Algumas vezes inventou circuitos para vencer estratégias que as agências e as cadeias ainda não tinham descoberto. Alegava que estava a poupar-lhes a maçada de fazerem novas invenções, com grandes custos para os seus acionistas, invenções que estavam de qualquer maneira condenadas ao malogro. À medida que o seu volume de vendas aumentava, ia reduzindo os preços. Era uma espécie de guerra eletrônica. E ele estava a vencer.
Tentaram processá-lo — qualquer coisa a respeito de uma conspiração para coarctar o comércio. Tiveram músculo político suficiente para que lhe fosse negado o pedido de recusa sumária da ação, mas influência insuficiente para ganharem realmente a causa. O julgamento obrigara Hadden a investigar os códigos jurídicos relevantes. Pouco depois requereu, por intermédio de uma conhecida agência da Madison Avenue da qual se tornara entretanto sócio majoritário silencioso, autorização para anunciar o seu próprio produto na televisão comercial. Após algumas semanas de controvérsia, os seus anúncios foram recusados. Processou então todas as três cadeias televisivas e neste julgamento conseguiu provar conspiração para coarctação de comércio. Recebeu uma enorme indenização, que constituiu na altura um recorde em casos daquela espécie, e contribuiu à sua modesta maneira para a morte das cadeias primitivas.
Houvera sempre pessoas que gostavam dos anúncios, claro, e não precisavam do Adnix para nada. Mas constituíam uma minoria em declínio. Hadden fez uma grande fortuna com a evisceração da transmissão de publicidade. Fez também muitos inimigos.
Quando os chips de reconhecimento de contexto se tornaram comercialmente acessíveis, ele estava preparado com o Preachnix, um submódulo que podia ser acoplado ao Adnix. Era simplesmente capaz de mudar de canal se por acaso estivesse sintonizado um programa religioso doutrinário. Tornava possível pré-selecionar palavras-chave, tais como ADVENTO ou ÊXTASE [14] O termo usado pelo autor é rapture, que, além de «êxtase» também significa, no inglês americano, «transporte de uma pessoa de um lugar para outro, especialmente para o céu». Creio que é neste último sentido que o autor usa a palavra. (N. da T.)
e cortar grandes fatias da programação disponível. O Preachnix foi uma verdadeira bênção para uma minoria paciente, mas significativa, de telespectadores. Dizia-se, em parte meio a sério, que o submódulo seguinte de Hadden se chamaria Jivenix e só funcionaria em discursos públicos de presidentes e primeiros-ministros. [15] Dos três inventos de Hadden, Adnix é a aglutinação da abreviatura de advertise e seus derivados («anunciar», «anúncio», «publicidade» etc.) e nix, que em calão significa «nada» «nicles». Temos, portanto, nicles, ou veto, de anúncios. Em Preachnix, como facilmente se deduz, o veto vai para a pregação, para os sermões. Em Jivenix há uma certa mordacidade, pois, além de calão relacionado com a música de swing e jazz e seus entusiastas, jive significa «pessoa loquaz, de falas doces ou insinceras». (N. da T.)
À medida que foi aperfeiçoando os chips de reconhecimento de contexto, tornou-se-lhe evidente que tinham aplicações muito mais vastas — dos campos da educação, ciência e medicina aos da informação militar e espionagem industrial. Foi a este aspecto que se foi buscar a fundamentação para a famosa ação Estados Unidos da América v. Hadden Cybernetics. Um dos chips de Hadden foi considerado bom demais para a vida civil, e, por recomendação da National Security Agency, as instalações e o pessoal-chave da produção do chip de reconhecimento de contexto passaram para a tutela do Governo. Era pura e simplesmente demasiado importante ler o correio russo. Sabia Deus, disseram-lhe, o que aconteceria se os Russos fossem capazes de ler o correio americano.
Hadden recusou-se a cooperar com a expropriação e jurou diversificar para áreas que não corressem o risco de ser conectadas com a segurança nacional. O Governo estava a nacionalizar a indústria. Proclamava-se capitalista, mas, quando lhe convinha, mostrava o seu rosto socialista. Ele descobrira uma necessidade pública insatisfeita e utilizara uma tecnologia nova, existente e legal para satisfazer essa carência. Era capitalismo clássico. Mas havia muitos capitalistas ortodoxos que diriam que ele já fora demasiado longe com o Adnix, que criara uma verdadeira ameaça ao modo de vida americano. Numa coluna assinada por V. Petrov, o Pravda declarou ser o caso um exemplo concreto das contradições do capitalismo. The Wall Street Journal replicou, talvez um pouco tangencialmente, chamando ao Pravda, que em russo significa «verdade», um exemplo concreto das contradições do comunismo.
Hadden desconfiava que a expropriação fora apenas um pretexto, que o seu verdadeiro delito tinha sido atacar a publicidade e o video-evangelismo. Adnix e Preachnix eram a essência da potencialidade empreendedora capitalista, argumentava repetidamente. Considerava-se que o objetivo do capitalismo era fornecer alternativas às pessoas.
— Bem, disse-lhes eu, a ausência de publicidade é uma alternativa. Só há verbas enormes para publicidade quando não há diferença entre os produtos. Se os produtos fossem realmente diferentes, as pessoas comprariam o que fosse melhor. A publicidade ensina as pessoas a não confiarem no seu critério. A publicidade ensina as pessoas a serem estúpidas. Um país forte precisa de pessoas inteligentes. Por isso, o Adnix é patriótico. Os fabricantes podem utilizar parte das suas verbas destinadas à publicidade na melhoria dos seus produtos. O consumidor será beneficiado. Revistas, jornais e negócios diretamente pelo correio florescerão, e isso aliviará a chatice das agências de publicidade. Não vejo onde está o problema.
O Adnix, muito mais do que as ações de difamação contra as cadeias comerciais primitivas, conduziu diretamente à morte destas. Durante algum tempo houve um pequeno exército de executivos publicitários desempregados, ex-funcionários de antigas cadeias de televisão comercial sem recursos e clérigos sem um centavo que jurara sanguinariamente vingar-se de Hadden. E houve um número sempre crescente de adversários ainda mais formidáveis. Não havia dúvida, pensou Ellie, de que Hadden era um homem interessante.
Читать дальше