Se alguém me detivesse subitamente na escuridão e me perguntasse para onde ia e porquê, não teria sabido responder. Mas não havia ninguém e a solidão daquela marcha nocturna dava-me uma sensação, ainda que temporária, de alívio. O ângulo da encosta acentuou-se e andar tomou-se cada vez mais difícil, mas eu fui avançando, tentando apenas seguir a direito, como se tivesse um objectivo definido. O meu coração batia depressa, tinha a respiração acelerada, mas continuava a subir num frenesi, com o conhecimento instintivo de que precisava exactamente daquele esforço esgotante. Afastava os ramos torcidos dos pinheiros anões, algumas vezes ficava preso neles, libertava-me e prosseguia. Cachos de agulhas roçavam-me pela cara e pelo peito e prendiam-se-me na roupa; os dedos pegavam-se-me, da resina. Num descampado, senti um vento inesperado. Jorrando do escuro, avançava a assobiar lá no alto, onde calculei que haveria uma passagem. Depois o maciço seguinte de pinhei; is anões engoliu-me. Havia nele ilhas de ar parado e momo, impregnado da forte fragrância dos pinheiros. Erguiam-se no meu caminho obstáculos indistintos, rochas espalhadas à toa, e debaixo dos pés escorregavam-me pedras soltas. Já devia caminhar havia diversas horas e ainda sentia em mim uma reserva de força suficiente para me conduzir ao desespero. O rego que levava a alguma passagem, provavelmente ao cume, estreitou tanto que eu podia ver ambos os seus lados erguerem-se contra o céu e ocultarem as estrelas com os seus espinhaços escuros.
A região de neblina ficava muito abaixo de mim, mas a noite fria não tinha Lua e as estrelas emitiam pouca luz. Fiquei por isso surpreendido com o aparecimento, à volta e acima de mim, de formas esbranquiçadas e alongadas. Encontravam-se na escuridão sem a iluminarem, como se tivessem absorvido radiância durante o dia. O primeiro ranger solto debaixo dos meus pés disse-me que pisava neve.
Uma fina camada de neve cobria o resto da íngreme encosta. Mal agasalhado como estava, teria enregelado até aos ossos, mas o vento amainou inesperadamente e eu pude ouvir claramente o rangido da neve a cada passo que dava.
Na passagem propriamente dita quase não havia neve. Enormes rochas varridas pelo vento recortavam-se em silhueta acima do cascalho. Parei, com o coração numa correria louca, e olhei na direcção da cidade. Ficava oculta pela encosta e só uma mancha de cinzento-avermelhado, das luzes, denunciava a sua posição no vale. Por cima de mim as estrelas tremiam distintamente visíveis. Andei mais alguns passos e sentei-me num rochedo em forma de sela. A claridade da cidade desaparecera outra vez. À minha frente, no escuro, estavam as montanhas, fantasmagóricas com os picos embranquecidos pela neve. Olhando com insistência para a aresta oriental do horizonte, consegui distinguir os primeiros raios do dia nascente. Contra ele, os contomos de um espinhaço partido em dois. Sombras informes à minha volta — ou dentro de mim? — deslocavam-se, recuavam, mudavam de proporções. Fiquei tão preocupado com isso que por momentos foi como se tivesse perdido a visão. E quando a recuperei estava tudo diferente. O céu oriental, de um ténue cinzento acima do vale invisível, acentuava mais ainda o negrume da rocha, mas mesmo assim eu poderia ter apontado todas as suas irregularidades, todos os seus recortes. Conhecia intimamente o cenário que o dia desdobraria para os meus olhos, porque tinha sido gravado em mim para sempre e não em vão. Ali estava a imutabilidade que eu desejara, que permanecera intacta enquanto o meu mundo ruía e perecia num abismo de tempo de século e meio. Fora naquele vale que passara os anos da minha mocidade, na velha estalagem de madeira da encosta relvosa, oposta, a Cloud Catcher. Dessa casa não deveriam restar nem os alicerces de pedra, as últimas tábuas deviam ter apodrecido havia muito, mas a cumeeira rochosa permanecia imutável, como se tivesse estado à espera daquele encontro. Poderia uma vaga recordação inconsciente ter-me guiado através da noite precisamente para tal lugar?
O choque do reconhecimento libertou-me instantaneamente de toda a minha fraqueza, tão desesperadamente ocultada — ocultada primeiro com uma falsa calma e depois com o frenesi intencional do meu montanhismo. Estendi a mão e, sem me embaraçar com a tremura dos dedos, apanhei um pouco de neve e meti-a na boca. O frio que se me derreteu na língua não me apaziguou a sede, mas despertou-me mais. Fiquei sentado a comer neve, ainda sem acreditar, à espera de que os primeiros raios de sol confirmassem a minha suposição. Muitos antes de o Sol aparecer, de cima das estrelas que lentamente se apagavam, desceu um pássaro que dobrou as asas, se tornou mais pequeno e, pousando num plano de rocha inclinado, começou a andar na minha direcção. Não me mexi, com medo de o assustar. O pássaro contornou-me e afastou-se, e precisamente quando eu pensava que não reparara em mim voltou pelo outro lado e contornou o rochedo onde eu estava sentado. Olhámo-nos um bocado, até eu perguntar, baixinho:
— De onde vieste?
Compreendendo que ele não tinha medo de mim, recomecei a comer neve. O pássaro inclinou a cabeça, fitou-me com as contas pretas dos olhos e de súbito, como se estivesse farto de mim, abriu as asas e foi-se embora. E eu, a descansar na rocha áspera, inclinado para a frente e com as mãos dormentes da neve, esperei pelo alvorecer e recordei a noite toda numa sinopse violenta e incompleta — Thurber e as suas palavras, o silêncio entre Olaf e mim, o panorama da cidade, a névoa vermelha e as aberturas na névoa feitas por funis de luz, rajadas de ar quente, a inalação e exalação de um milhão, os largos suspensos, alamedas, avenidas, arranha-céus com asas de fogo, os diferentes níveis com cores diferentes, a desinspirada conversa com o pássaro na passagem e eu a comer neve… E todas estas imagens eram e não eram imagens, como às vezes nos sonhos, eram simultaneamente uma recordação e a tentativa de evitar aquilo em que não ousava tocar. Porque, de princípio a fim, eu tinha de encontrar em mim próprio uma aceitação do que não podia aceitar. Mas isso tinha sido antes, como num sonho. Agora, de cabeça desanuviada e atento, à espera do dia, num ar quase prateado e na presença, que lentamente se revelava, das encostas das montanhas, dos sulcos na rocha e do cascalho, que emergiam da noite em silenciosa confirmação da realidade do meu regresso, eu, sozinho mas não um estranho à Terra, agora sujeito a ela e às suas leis, pude pela primeira vez, sem protesto nem mágoa, pensar naqueles que iam partir para o tosão de ouro das estrelas…
A neve do cume incendiou-se de ouro e branco, sobressaiu das sombras purpúreas do vale, sobressaiu poderosa e eterna, e eu, sem fechar os olhos cheios de lágrimas, levantei-me devagar e comecei a caminhar através das pedras para sul, para minha casa.