Francis Carsac
Guerra de estrelas
(Traduzido, para o português, por M. Henrique Leiria e C. Eurico Costa, e adaptado, para o brasileiro, por Gumercindo R. Dorea)
EDIÇÕES G. R. D.
São Paulo
1961
Título do original francês: Ceux de Nulle Part.
PRIMEIRA PARTE: OS VISITANTES
Nesta manhã de Março de 195… bati na porta do meu velho amigo, o Dr. Clair, não suspeitando que, dentro de pouco tempo, iria ouvir o mais extraordinário e fantástico relato de toda a minha vida. Disse «meu velho amigo» (se bem que tanto ele como eu só outro dia tivéssemos ultrapassado a casa dos 30) porque nos conhecíamos desde a infância, embora há quatro anos tivéssemos perdido o contacto.
A porta foi aberta — melhor, entreaberta — por uma velha mulher vestida de negro, como é hábito de todas as velhas mulheres desta região. Resmungou:
— Se é para uma consulta, o doutor não recebe hoje. Está fazendo experiências…
Sendo um excelente médico, Clair, todavia, não exercia regularmente a profissão.
Graças a uma sólida fortuna, podia consagrar quase todo o seu tempo a complexas experiências de biologia. O seu laboratório, instalado na casa paterna, perto de Rouffignac, era, na opinião das sumidades médicas que o visitaram, um dos melhores do mundo. Muito discreto no que dizia respeito a suas investigações, a elas se referia muito por alto na correspondência que trocávamos, mas, no entanto, eu sabia, pelas suas visitas, que ele era um dos que, como tantos outros dispersos pelo mundo, procuravam a solução do problema do câncer.
A velha mulher fitava-me, desconfiada.
— Não, não venho fazer consulta — respondi. — Diga ao doutor que Frank Borie deseja vê-lo.
— Ah! É o Sr. Borie? Isso é diferente. Ele está lhe esperando.
Do fundo do corredor uma voz de baixo, profunda, gritou:
— Então, Madalena. que é? Quem está aí?
— Sou eu, Séva!
— Entra, com os diabos!
Clair herdara de sua mãe, russa emigrada, uma voz à Chaliapine, uma estatura de cossaco siberiano e o prenome de Vsévolod; de seu pai, natural do Périgeux, uma tez morena e cabelos negros, o que lhe tinha valido, no nosso grupo de estudantes, a alcunha de Claro-Escuro.
Dirigiu-se para mim em grandes passadas, quase me arrancou o braço com um aperto de mão, abalou-me com uma valente palmada nos ombros e, em vez de me mandar entrar para o seu gabinete, como de costume, reconduziu-me para a porta. — Que belo dia! — declamou ele, enfaticamente — O sol brilha e você veio! A verdade é que só esperava que chegasse de noite, no automotriz.
— Trouxe o meu automóvel. Mas venho lhe causar incômodo?
— Não, não, de forma nenhuma! Estou verdadeiramente contente por lhe ver. O que faz você? Como vai a pilha atômica?
— Silêncio! Mistério! Você sabe muito bem que não posso falar disso.
— Está bem, cientista misterioso! A propósito: quero lhe agradecer a última remessa de isótopos radioativos. Me foram muito úteis. Mas não aborrecerei você com outros pedidos. Estou tratando de coisas melhores.
— O que? — perguntei, admirado.
— Calma! É mistério! Não posso falar disso!
No corredor, atrás de nós, ouviu-se um ligeiro ruído de passos e pela porta, que ficara entreaberta, pareceu-me distinguir uma delicada silhueta feminina. Todavia, segundo eu sabia, Clair era solteiro e não mantinha qualquer ligação.
Notou, sem dúvida, a direção do meu olhar e, segurando-me pelo braço, fez com que me voltasse.
— Pois muito bem. Você não mudou. Está o mesmo. Entremos.
— Não posso lhe retribuir o cumprimento. Você envelheceu.
— Ah! Talvez… talvez! Passe primeiro.
O gabinete dele que eu bem conhecia, com as estantes de livros (dos quais bem poucos tratavam de medicina), estava vazio, mas nele flutuava um sutil e agradável perfume, que aspirei. Clair apercebeu-se disso e, evitando qualquer pergunta minha, esclareceu:
— Sim, recebi há alguns dias — oh! em consulta… uma célebre atriz e o seu perfume ainda permanece. É extraordinário o progresso da química!
Estabelecemos uma conversa sem sequência. Comuniquei-lhe a morte de minha mãe e tive a surpresa de o ouvir dizer: «Ah! Muito bem!».
— O quê? Muito bem?! — exclamei, indignado e penalizado.
— Não, eu queria dizer que compreendo, finalmente, porque você me deixou tanto tempo sem notícias suas. Então você está agora sozinho no mundo?
— Sim.
— Pois bem, talvez proponha a você uma coisa muito interessante. Mas é ainda um vago projeto. Falaremos dele hoje de noite.
— E no laboratório? Algo de novo?
— Quer vê-lo? Venha comigo.
O laboratório — construído após a minha última visita, há quatro anos — era uma ampla divisão envidraçada, mais comprida do que larga, que ocupava os fundos da casa. Detive-me na porta, assobiando de admiração. Percorri-o, notando, de passagem, o micromanipulador, o coração artificial. Num quarto escuro contíguo erguia-se um enorme gerador de raios X. No centro do laboratório, sobre uma mesa, uma cobertura dissimulava um aparelho.
— E isto? — perguntei.
— Não é nada. Não está ainda pronto. É uma experiência…
— Ignorava que você construía aparelhos. Sabe que, como físico, poderei talvez lhe ajudar.
— Veremos. mais tarde. Agora prefiro não falar no assunto.
— Seja — disse eu, um pouco constrangido. — Se isso lhe desagrada…
A campainha da porta da rua tiniu.
— Bolas! A Madalena saiu. Tenho de ir abrir. Tendo ficado só, aproximei-me do aparelho e, indiscretamente, ergui a cobertura.
Fiquei boquiaberto. Em lugar do mecanismo improvisado que esperava, vi um maravilhoso conjunto de tubos de vidro e de metal, de ampolas transparentes ou opacas, de ligações. Em múltiplos mostradores agulhas bífidas marcavam graduações de que eu não pude adivinhar o significado. Estou habituado a toda a espécie de aparelhos científicos e utilizamos, no meu laboratório, alguns bem complexos. Mas não conhecia nenhum que se assemelhasse a este ouvindo no corredor os passos apressados do meu amigo, deixei cair rapidamente a cobertura e, com ar indiferente, pus-me a olhar distraidamente o jardim, através da janela.
— Um caso de difteria num garoto. O meu colega está ausente. Tenho de ir. Leia um livro no meu gabinete enquanto não volto.
— Quer que lhe leve? O meu carro está na porta.
— Ótimo. Isso evitará que vá tirar o meu da garagem.
Pelo caminho meditava nas singularidades que havia notado. Clair só me esperava de noite e ficara com um ar embaraçado por eu ter chegado mais cedo. Tinha-me entretido durante alguns minutos na porta, embora fizesse frio. Eu percebera uma silhueta esquivando-se no corredor e, logo a seguir, Clair conduzira-me para dentro.
Mostrara um ar satisfeito quando soubera do falecimento de minha mãe e por eu ficar sozinho no mundo. E, por fim, havia aquele estranho aparelho… Diabos me levem se descortinava para que servia! E, ainda por cima, num laboratório de biologia! Seria Clair o inventor? Isso já me parecia possível. E o construtor? Recordei— me das suas montagens de física, no liceu, e não pude deixar de sorrir.
Paramos em frente a uma chácara. Clair só se demorou um quarto de hora.
— Não é nada. Vim a tempo. O meu colega continuará o tratamento.
— Você não clinica mais?
— Raramente. Não tenho tempo. Somente quando o Dr. Gauthier está ausente ou quando me pede consulta.
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