Isaac Asimov
Nêmesis
A Mark Hurst,
meu estimado copidesque,
que, em minha opinião, trabalha
mais duro do que eu
nos meus originais.
Tradução de
Ronaldo Sergio de Biasi
Este livro não faz parte da Serie da Fundação, da Série dos Robôs ou da Série do Império. É uma obra independente. Achei melhor alertar o leitor quanto a este ponto, para evitar mal-entendidos. Naturalmente, posso um dia escrever um outro romance que ligue esta historia as demais, mas não garanto que vá fazê-lo.
Outro ponto. Faz muito tempo que decidi seguir uma regra capital em todos os meus trabalhos: escrever com clareza. Abri mão de todas as pretensões de escrever de forma poética, simbólica, experimental ou em qualquer das outras variedades que poderiam (se eu fosse suficientemente bom) conquistar para mim o prêmio Pulitzer. Limito-me a escrever com clareza, estabelecendo desta forma uma relação de amizade com o leitor; quanto aos críticos profissionais… ora, eles que pensem o que quiserem.
Entretanto, às vezes minhas histórias se escrevem sozinhas, e nesta, descobri, para minha surpresa, que a ação transcorre em dois planos. Uma série de eventos está ocorrendo no presente da história, enquanto outra tem lugar no passado, embora se aproximando o tempo todo do presente. Tenho certeza de que o leitor não terá dificuldade alguma para assimilar o padrão, mas, já que somos amigos, decidi mencionar o fato logo de saída.
Estava ali sentado, sozinho.
Do lado de fora estavam as estrelas, e uma estrela em particular, com seu pequeno sistema planetário. Podia vê-la com os olhos da mente, mais nitidamente que a veria na realidade se se desse ao trabalho de tornar a janela transparente.
Uma estrela pequena, avermelhada, da cor do sangue e da destruição e com um nome apropriado.
Nêmesis!
Nêmesis, a deusa da vingança divina.
Pensou novamente na história que ouvira na infância: uma lenda, um mito, uma fábula a respeito de um dilúvio universal que dizimara a humanidade pecadora, deixando apenas uma família para começar tudo de novo.
Desta vez, não ia haver nenhum dilúvio. Apenas Nêmesis.
A degeneração da humanidade tinha acontecido de novo e a vinda de Nêmesis era um castigo apropriado. Não seria um dilúvio. Nada tão simples quanto um dilúvio.
Mesmo que houvesse sobreviventes… para onde iriam?
Por que não sentia nenhuma tristeza? A humanidade não podia continuar daquele jeito. Estava morrendo aos poucos, em conseqüência dos próprios crimes. Se a morte lenta e sofrida fosse substituída por uma muito mais rápida, isso seria motivo de tristeza?
Ali, em órbita em torno de Nêmesis, havia um planeta. Em órbita em torno do planeta, um satélite. Em órbita em torno do satélite, havia Rotor.
No antigo dilúvio, os sobreviventes haviam usado uma arca. Tinha apenas uma idéia vaga do que era uma arca, mas Rotor desempenharia o mesmo papel. Levava com ele uma amostra da humanidade que estava a salvo e que construiria um mundo novo e muito melhor.
Para o velho mundo, porém… só havia Nêmesis!
Pensou de novo na questão. Uma estrela anã vermelha, em sua trajetória inexorável. Ela própria e seu sistema planetário não corriam nenhum perigo, O mesmo não se podia dizer da Terra.
Terra, Nêmesis está chegando!
Trazendo com ela a Justiça Divina!
Marlene tinha visto o Sistema Solar pela última vez quando tinha pouco mais de um ano de idade. Não se lembrava de nada, naturalmente.
Havia lido muito a respeito, mas nada nessas leituras a fizera sentir que um dia ela havia sido parte do Sistema Solar.
Em todos os seus quinze anos de vida, só se lembrava de Rotor. Sempre o considerara como um mundo muito grande. Afinal, tinha oito quilômetros de diâmetro. Desde os dez anos, de vez em quando — uma vez por mês, quando tinha tempo — dava a volta completa a Rotor. As vezes, usava os caminhos de baixa gravidade, para poder planar um pouco. Caminhando ou planando, era sempre divertido passear em Rotor, com seus edifícios, parques, fazendas e pessoas.
A volta levava um dia inteiro, mas a mãe não se incomodava. Considerava Rotor totalmente seguro.
— Não é como a Terra — costumava dizer, sem explicar por que a Terra não era segura.
Era das pessoas que Marlene menos gostava. Dizia-se que o novo recenseamento revelaria que a população de Rotor havia aumentado para sessenta mil habitantes. Gente demais. Todos usando máscaras. Marlene detestava olhar para aquelas máscaras e saber que havia algo diferente atrás delas. Entretanto, nada podia fazer. Havia comentado a respeito, quando era mais moça, mas a mãe ficara zangada e a proibira de mencionar o assunto.
Quando ficou mais velha, pôde perceber mais claramente a falsidade, mas isso deixou de incomodá-la. Aprendeu a aceitar o fato como natural e a passar a maior parte do tempo sozinha com seus pensamentos.
Ultimamente, esses pensamentos se voltavam com freqüência para Eritro, o planeta em torno do qual estavam girando havia tantos anos. Não sabia por que, mas freqüentemente se dirigia à plataforma de observação e ficava olhando para o planeta, com vontade de estar em Eritro.
A mãe lhe perguntava, com impaciência, a razão para esse comportamento; que havia para fazer na superfície de um planeta estéril, inabitado? Ela não sabia o que responder.
Estava olhando para o planeta no momento, sozinha na plataforma de observação. O lugar era pouco freqüentado pelos rotorianos, que pareciam não compartilhar do seu interesse por Eritro.
Ali estava ele: parte iluminado, parte na sombra. Recordava- se vagamente de que alguém a segurara no colo para vê-lo aparecer, de que o vira aumentar aos poucos de tamanho enquanto Rotor se aproximava cada vez mais.
Seria uma memória real? Afinal, devia ter menos de quatro anos na ocasião, de modo que era difícil ter certeza.
De repente, aquela memória — real ou não — foi substituída por outros pensamentos, por uma súbita compreensão de quão grande podia ser um planeta. Eritro tinha mais de doze mil quilômetros de diâmetro, em vez de apenas oito. Era um tamanho difícil de imaginar. Não parecia tão grande assim na tela. Não podia avaliar o que sentiria se um dia se visse de pé na superfície do planeta, podendo ver uma extensão de centenas ou mesmo milhares de quilômetros. Só sabia que desejava passar por essa experiência.
Aurinel não estava interessado em Eritro, o que era decepcionante. Ele dizia que tinha outras coisas com que se preocupar, como preparar-se para a universidade. Tinha dezessete anos e meio. Marlene tinha acabado de fazer quinze anos. Isso não fazia muita diferença, pensou, orgulhosamente, já que as meninas amadureciam mais cedo.
Pelo menos, deviam amadurecer. Olhou para o próprio corpo e pensou pela milésima vez, desanimada, que ainda parecia uma criança, baixa e atarracada.
Olhou de novo para Eritro, belo e avermelhado na parte iluminada. Era suficientemente grande para ser um planeta, mas na verdade, como sabia muito bem, era um satélite. Girava em torno de Megas, e era Megas (ainda maior) que era o planeta, embora todos chamassem Eritro por esse nome. Os dois juntos, Megas e Eritro, e Rotor, também, giravam em torno da estrela Nêmesis.
— Marlene!
Marlene ouviu a voz atrás dela e viu logo que era Aurinel. Ultimamente, não se sentia muito à vontade com o rapaz. Voltou-se e murmurou, tentando não enrubescer:
— Olá, Aurinel.
O rapaz riu para ela.
— Está olhando para Eritro, não está?
Ela não respondeu. Claro que era o que estava fazendo. Todos sabiam como se sentia a respeito de Eritro.
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