— Que veio fazer aqui? — (Diga que estava à minha procura, pensou.)
— Sua mãe me mandou.
(Droga!)
— Para quê?
— Disse que você estava deprimida e que sempre que se sentia triste vinha para cá. Pediu-me para vir buscá-la porque, se ficasse muito tempo aqui, ficaria ainda mais deprimida. Por que você está triste?
— Não estou. E se estiver, tenho meus motivos.
— Que motivos? Ora, vamos! Você não é mais nenhuma criança. Precisa aprender a se expressar.
Marlene levantou as sobrancelhas.
— Eu sei me expressar muito bem. O motivo é que eu gostaria de viajar.
Aurinel riu.
— Você viajou, Marlene. Viajou mais de dois anos-luz. Ninguém, em toda a história do Sistema Solar, viajou mais que uma pequena fração de ano-luz. Isto é, ninguém exceto nós. De modo que você não tem razão para se queixar. Você é Marlene Insigna Fisher, Viajante Galáctica.
Marlene teve que se controlar para não rir. Insigna era o nome de solteira da mãe e sempre que Aurinel dizia o seu nome completo, fazia uma careta e batia continência. Havia algum tempo que não fazia aquilo. Talvez fosse porque estivesse ficando adulto e achasse que devia se portar com mais seriedade.
— Não me lembro da viagem. Você sabe que não me lembro, de modo que essa viagem não conta. Estamos aqui, a mais de dois anos-luz do Sistema Solar, e nunca mais vamos voltar.
— Como é que você sabe?
— Ora, vamos, Aurinel. Já ouviu alguém falar em voltar?
— Mesmo que a gente não volte, que importa? A Terra é um planeta superpovoado, e todo o Sistema Solar está ficando velho e superlotado. Estamos melhor aqui… senhores de tudo que exploramos.
— Não é verdade. Exploramos Eritro, mas não podemos ir até lá para sermos senhores do planeta.
— Claro que podemos. Temos um Domo funcionando em Eritro. Você sabe disso.
— Não é para nós, mas apenas para alguns cientistas. Estou falando de nós. Não temos permissão para ir até lá.
— Um dia vamos ter.
— Um dia, quando eu for uma velha… ou já tiver morrido.
— Não seja tão pessimista. Seja como for, saia daqui, volte para o mundo e faça sua mãe feliz. Não posso ficar mais tempo. Tenho coisas para fazer. Dolorette…
Marlene sentiu um zumbido nos ouvidos e não conseguiu ou vir o resto da frase. Dolorette! Ela odiava Dolorette, que era alta e… vazia.
Que adiantava? Aurinel andava atrás dela, e Marlene sabia, só de olhar para o rapaz, o que ele sentia por Dolorette. Agora recebera a missão de procurar por ela, Marlene, e achava que com isso estava perdendo tempo. Sabia exatamente como Aurinel se sentia, podia sentir que estava ansioso para voltar para aquela… para aquela Dolorette. (Por que sempre podia saber o que o rapaz estava sentindo? As vezes era tão doloroso…)
De repente, Marlene teve vontade de magoá-lo, de dizer alguma coisa que o ferisse. Alguma coisa verdadeira. Seria incapaz de mentir para ele.
— Nunca mais vamos voltar para o Sistema Solar — declarou, com convicção. — Eu sei por quê.
— Ah, sabe?
Vendo que Marlene hesitava, o rapaz acrescentou:
— Mistérios?
Marlene se sentiu encurralada.
— Não quero contar a você. É uma coisa que eu não devia saber.
Na verdade ela queria contar. No momento, queria que todos se sentissem deprimidos.
— Conte para mim! Somos amigos, não somos?
— Somos? Está bem, está bem, vou contar. Não vamos voltar ao Sistema Solar porque a Terra vai ser destruída.
Aurinel não reagiu da forma que a jovem esperava. Em vez disso, deu uma gargalhada. Levou algum tempo para parar, enquanto Marlene olhava para ele, indignada.
— Onde foi que você ouviu isso? Acho que anda vendo muitos filmes de aventura!
— Claro que não!
— Então por que está dizendo uma coisa dessas?
— Porque eu sei. Pelo que as pessoas dizem, mas não dizem, pelo que fazem, quando não sabem que estão fazendo. E pelas coisas que o computador me diz quando faço as perguntas certas.
— Que coisas ele contou para você?
— Não vou dizer.
— Não é possível… apenas possível… que você esteja imaginando coisas?
— Não, não é possível. A Terra não será destruída imediatamente… talvez leve alguns milhares de anos… mas certamente será destruída. — Fez que sim com a cabeça, muito séria. — E nada poderá impedir que isso aconteça — explicou ela.
Marlene deu as costas ao rapaz e afastou-se, furiosa porque Aurinel havia duvidado de suas palavras. Não, duvidado, não. Era mais do que isso. Ele achava que estava ficando louca. A verdade era que falara demais e não ganhara nada com isso. Estava tudo errado.
Aurinel ficou olhando para ela. Tinha parado de rir e o rosto jovem, de feições regulares, mostrava uma ruga de preocupação.
Eugenia Insigna tinha chegado à meia-idade durante a viagem para Nêmesis e a longa espera que se seguira. Passava os anos repetindo para si mesma: isto é definitivo; para mim e para meus filhos.
A idéia sempre a deixava deprimida.
Por quê? Estava a par das conseqüências inevitáveis do que haviam feito desde o momento em que Rotor deixara o Sistema Solar. Todos a bordo de Rotor (eram todos voluntários) sabiam das conseqüências. Aqueles que não tinham coragem de abandonar para sempre o Sistema Solar haviam deixado Rotor antes da partida, e entre eles estava…
Eugenia não concluiu o pensamento. Ele sempre vinha, e ela fazia tudo para não terminá-lo.
Agora estavam em Rotor, mas Rotor seria a sua “casa”? Era a casa de Marlene; ela não conhecia nenhum outro lugar. Mas que dizer de si própria? Eugenia só se sentiria em casa na Terra, na Lua, em Marte, nos mundos que haviam acompanhado a humanidade durante toda a sua história e pré-história. Nos mundos que haviam acompanhado a vida desde a sua criação. A idéia de que sua “casa” não era em Rotor jamais a abandonaria. Era natural, pois havia passado os primeiros vinte e oito anos de sua vida no Sistema Solar e havia feito um curso de pós-graduação na própria Terra entre os vinte e um e os vinte e três anos.
Era estranho como a lembrança da Terra a deixava com saudade. Ela não havia gostado da Terra. Não havia gostado das multidões, da falta de organização, da combinação de anarquia nas coisas importantes com excesso de autoritarismo do governo em pequenas coisas. Não havia gostado das tempestades, da erosão, do excesso de oceanos. Voltara a Rotor com um sentimento de gratidão e com um novo marido a quem tentara vender seu pequeno mundo artificial… tornar seu conforto ordeiro tão agradável para ele quanto era para ela, que o conhecia desde o dia do nascimento.
Ele, porém, só podia ver que aquele mundo era muito pequeno.
— Você esgota em seis meses tudo que ele tem para dar — dissera ele.
Ela própria não conseguira prender-lhe o interesse por muito mais que seis meses. Ora, ora…
Iria dar certo. Não para ela. Eugenia Insigna estava irremediavelmente perdida entre dois mundos. Mas para as crianças. Eugenia nascera em Rotor e podia viver sem a Terra. Marlene havia nascido — ou quase havia nascido — em Rotor e podia viver sem o Sistema Solar, exceto por uma vaga sensação de que sua origem estava lá. Os filhos de Marlene não teriam nem mesmo essa sensação. Para eles, a Terra e o Sistema Solar não passariam de um mito, e Eritro seria o mundo do futuro.
Pelo menos, era o que esperava. Marlene parecia sentir uma estranha atração por Eritro, embora essa atração tivesse aparecido havia menos de um ano e talvez desaparecesse de um momento para o outro.
No conjunto, seria muito ingrata se encontrasse motivos para se queixar. Ninguém teria imaginado a existência de um planeta habitável girando em torno de Nêmesis. As condições que permitiam a um planeta ser habitado eram muito especiais. Era extremamente improvável que houvesse um segundo planeta habitável tão perto do Sistema Solar.
Читать дальше