Isaac Asimov
A Fundação e a Terra
À memória de Judy-Lynn del Rey (1943–1986), uma gigante de mente e espírito.
Capítulo 1
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— Por que fiz isso? — perguntou Golan Trevize.
Não era uma pergunta nova. Desde sua chegada a Gaia, ele a fazia frequentemente a si mesmo. Às vezes, acordava de um sono profundo no frescor agradável da noite e encontrava a pergunta ressoando no fundo de sua mente, como um leve toque de tambor: Por que fiz isso? Por que fiz isso?
Agora, porém, pela primeira vez, estava fazendo a mesma pergunta a Dom, o patriarca de Gaia.
Dom podia sentir muito bem a tensão que estava por trás das palavras de Trevize, já que as emoções do conselheiro não tinham segredos para ele. Entretanto, manteve-se impassível. Gaia não devia, de forma alguma, intrometer-se nos pensamentos de Trevize, e a melhor forma de evitar a tentação era ignorar teimosamente o que ele sentia.
— Fez o quê, Trev? — perguntou.
Achava difícil usar mais de uma sílaba ao dirigir-se a uma pessoa. Trevize já estava quase se acostumando.
— A decisão que tomei — explicou Trevize. — Escolhendo Gaia como o futuro.
— Você tomou a decisão acertada — disse Dom, sentado, os olhos velhos e profundos encarando o homem da Fundação, que estava de pé.
— Isso é o que você pensa — disse Trevize, com impaciência.
— Eu/nós/Gaia sabemos que você está certo. É por isso que vale tanto para nós. Você tem a capacidade de tomar decisões corretas com base em dados incompletos, e você tomou uma decisão. Escolheu Gaia! Recusou tanto a anarquia de um Império Galáctico baseado na tecnologia da Primeira Fundação como a anarquia de um Império Galáctico baseado nos poderes mentais da Segunda Fundação. Você chegou à conclusão de que nenhum dos dois Impérios seria estável por muito tempo. Por isso, escolheu Gaia.
— Isso mesmo — concordou Trevize. — Exatamente! Escolhi Gaia, um superorganismo, um planeta inteiro com um único pensamento e uma única personalidade, de modo que foi preciso inventar o pronome “Eu/nós/Gaia” para expressar o inexprimível. — Começou a andar nervosamente de um lado para outro. — Um dia, Gaia se tornará a Galáxia, um supersuperorganismo que será composto por todos os planetas habitados da Via Láctea.
Trevize parou, voltou-se para Dom e disse, de forma quase agressiva:
— Sinto que estou certo e você sente também, mas você quer que a Galáxia se torne uma realidade, de modo que está satisfeito com a decisão. Por outro lado, há algo em mim que não quer que isso aconteça, e portanto não estou preparado para aceitar esta escolha com tanta facilidade. Quero saber por que tomei a decisão que tomei. Quero examinar de novo meus motivos até convencer-me de que são razoáveis. Para mim, não basta “sentir” que estou certo. Como posso ter certeza de que não cometi um erro? Que é que garante que tomei a decisão correta?
― Eu/nós/Gaia não sabemos por que você sempre chega à decisão mais acertada. Isto é importante, contanto que a decisão seja tomada?
― Você está falando em nome de todo o planeta, não está? Em nome da consciência comum de todas as gotas de orvalho, de todas as pedras, até mesmo do núcleo de metal fundido de Gaia?
— Sim, e o mesmo poderia fazer qualquer parte do planeta na qual a intensidade da consciência comum fosse suficientemente forte.
— Toda essa consciência comum está satisfeita em me usar como se eu fosse uma caixa preta? Enquanto a caixa preta estiver funcionando, não interessa o que existe em seu interior? Pois isso não me agrada. Não gosto de ser uma caixa preta. Quero saber o que há dentro de mim. Quero saber como e por que escolhi Gaia e a Galáxia para o futuro. Só assim ficarei em paz comigo mesmo.
— Por que encara sua própria decisão com tanta desconfiança?
Trevize deu um profundo suspiro e respondeu devagar, em tom incisivo:
— Por que não quero ser parte de um superorganismo. Não quero ser um apêndice insignificante, pronto para ser jogado fora assim que o superorganismo achar que não sou mais necessário.
Dom olhou pensativamente para Trevize.
— Então quer mudar a decisão, Trev? Ainda é tempo, você sabe.
— Gostaria de mudar a decisão, mas não posso fazer isso apenas porque ela não me agrada. Para fazer alguma coisa, tenho que saber se tomei ou não a decisão acertada. Não basta sentir que estou certo.
— Se você sente que está certo, então está certo.
Sempre aquela voz suave, controlada, que às vezes deixava Trevize ainda mais agitado, tamanho era o contraste com o torvelinho de suas próprias ideias.
Foi então que Trevize declarou, quase num sussurro, quebrando afinal o equilíbrio instável entre o sentir e o saber:
— Preciso encontrar a Terra.
— Porque tem algo a ver com a sua necessidade incontrolável de adquirir novos conhecimentos?
— Porque é outro problema que me preocupa muito e porque sinto que existe alguma relação entre as duas questões. Não sou uma caixa preta? Pois eu sinto que existe uma ligação. Isso não é suficiente para convencê-lo de que a ligação existe?
— Talvez — afirmou Dom, em tom impessoal.
— Mesmo que tenham se passado milhares de anos, vinte mil, talvez, desde que os povos da Galáxia mantiveram o último contato com a Terra, como é possível que tenhamos todos esquecido o nosso planeta de origem?
— Vinte mil anos é mais tempo do que você imagina. Os conheci-incnlos de que dispomos a respeito dos primórdios do Império são ex-iianamente escassos; existem muitas lendas que provavelmente não contêm nem um pingo de verdade, mas que continuamos repetindo, ou mesmo aceitando como verdadeiras, por falta de um substituto razoável. Pois a Terra é ainda mais antiga que o Império.
― É impossível que não tenha restado nenhum documento. Meu bom amigo, Pelorat, coleciona mitos e lendas a respeito da Terra; tudo o que consegue obter. É seu trabalho e, mais importante ainda, seu passa-tempo favorito. Pois esses mitos e lendas são tudo o que existe. Jamais en-controu um único registro, um único documento a respeito da Terra!
― Documentos de vinte mil anos atrás? As coisas apodrecem, se desfazem, são destruídas pelo abandono e pela guerra.
— Pelo menos, teria que haver registros dos registros; cópias, cópias das cópias e cópias das cópias das cópias; obras escritas há muito menos tempo que vinte milênios. Essas obras foram deliberadamente removidas. A Biblioteca Galáctica, em Trantor, devia ter muitos documentos a respeito da Terra. Eles chegam a ser mencionados em alguns registros históricos, mas não podem ser encontrados na Biblioteca. Simplesmente desapareceram.
— Não se esqueça de que Trantor foi saqueada há alguns séculos.
— Sim, mas a Biblioteca permaneceu intacta. Ela foi protegida pelos membros da Segunda Fundação. Foi a própria Segunda Fundação que descobriu recentemente que as obras que tratam da Terra estão faltando. Os documentos foram removidos de propósito, em época relativamente recente. Por quê? — Trevize parou de andar e olhou fixamente para Dom. — Se eu encontrar a Terra, descobrirei o que esconde...
— O que esconde?
— O que esconde ou o que nela foi escondido. Quando eu descobrir isso, tenho o pressentimento de que saberei por que escolhi Gaia e a Galáxia, mesmo sacrificando a nossa individualidade. Então poderei saber, e não apenas sentir, que tomei a decisão correta. Nesse caso — concluiu, com ar resignado — não haverá mais nada a fazer.
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