Tradução de Donaldson M. Garschagen
Já percorremos juntos, não é mesmo, um longo caminho caro leitor?
Quando nos conhecemos, há 25 anos, eu era piloto de avião, extasiado com o vôo, à procura de significados por trás de instrumentos e de dados como a velocidade do ar. Há vinte anos, nossa viagem nos levou a um modelo de vida nas asas de uma gaivota.
Há dez anos, encontramos o salvador do mundo, descobrimos que esse salvador éramos nós mesmos. No entanto, até onde você podia saber, leitor, eu era uma alma solitária com a cabeça cheia de rumos e altitudes, escondida atrás de uma cortina de palavras. E você tinha razão.
Era seguro, assim pensava eu, afirmar que descobri algumas respostas achadas por você, que passei longe de outras que você não descobriu. Está começando a entender como o mundo funciona? Eu estou. Você tem se sentido inquieto e solitário com o que aprendeu?
Eu também. Você procurou, a vida inteira, o amor verdadeiro?
Também fiz isso, achei essa pessoa e, em A ponte para o sempre apresentei-o a minha mulher, Leslie Parrish-Bach.
Agora escrevemos juntos, Leslie e eu. Tornamo-nos RiLes-chardlie, e não sabemos mais onde termina um de nós e o outro começa.
Por causa de A ponte para o sempre, nossa família de leitores tornou-se ainda mais chegada. Aos aventureiros que voaram comigo em livros anteriores, vieram somar-se aqueles que anseiam pelo amor e aqueles que o descobriram: nossas vidas refletem a deles, é isso que nos dizem repetidamente em cartas.
Em geral, lemos a correspondência na cozinha. Um de nós lê em voz alta, enquanto o outro prepara a refeição-surpresa para o dia. Já rimos tanto com as cartas de alguns leitores a ponto de deixar cair a salada dentro da sopa. Outras cartas serviram para fornecer o sal de nossas lágrimas.
Um dia, para servir de gelo, chegou esta: “Lembra-se do diferente Richard sobre quem você escreveu em A ponte para o sempre, aquele que se recusou a trocar suas muitas mulheres por Leslie? Achei que você gostaria de receber notícias minhas, pois fui eu quem fugi, e sei o que aconteceu a seguir.”
Os paralelos que ele nos contou eram assombrosos. Esse homem é um escritor. Um único livro lhe rendera uma repentina fortuna, e ele enfrentara os mesmos problemas com o imposto de renda que eu. Havia desistido de procurar uma só mulher e preferira muitas delas.
Foi então que encontrou aquela que o amava tal como ele era, e ela o colocou diante de uma opção: ou ela seria a única mulher de sua vida ou não teria nada a ver com a vida dele, a mesma opção que Leslie um dia me fizera encarar, a mesma bifurcação na estrada.
Diante da encruzilhada, eu tomara o caminho da esquerda, escolhendo o afeto e o futuro cálido que, segundo eu esperava, viria com ele.
Já ele virou para a direita. Fugiu da mulher que o amava, abandonou suas casas e aviões para o governo e correu, como eu quase fizera, para a Nova Zelândia. Em sua carta, dizia: “…a literatura vai indo bem, possuo casas e carros em Auckland, Madri e Cingapura, posso viajar para qualquer lugar deste mundo, menos para os Estados Unidos. Ninguém ameaça pôr as mãos em mim.
“Mas ainda penso em minha Laura. Fico pensando no que teria acontecido se eu lhe tivesse dado uma oportunidade. Poderia ser o que A ponte para o sempre me diz. Vocês dois ainda estão juntos? Será que tomei a decisão certa? E você?”
O homem é multimilionário, seus desejos se concretizam, tem o mundo a seus pés. Mas enxuguei uma lágrima que me rolava dos olhos e, levantando o olhar, dei com Leslie debruçada sobre a mesa, com o rosto enterrado nas mãos.
Durante muito tempo eu imaginara que o homem era uma fantasia, uma sombra a viver em alguma dimensão insólita no podia-ter-sido, alguém que eu inventara. Depois da carta dele, sentimo-nos inseguros, vacilantes, como se uma campainha nos chamasse e não soubéssemos como responder.
Então, por coincidência, reli um estranho livreto de física A interpretação multimundos da física quântica. Com efeito, muitos mundos, diz ele, A cada instante o mundo que conhecemos se divide numa quantidade infinita de outros mundos, de futuros diferentes e passados distintos.
De acordo com a física, o outro Richard não desapareceu na encruzilhada onde modifiquei minha vida. Ele existe, neste exato momento, num mundo alternativo que desliza ao lado deste em que estamos. Naquele mundo, também Leslie Parrish escolheu uma vida diferente: Richard Bach não é seu marido, é um homem que ela deixou escapar ao descobrir que o que ele tinha a oferecer não era amor e alegria e sim interminável padecimento.
Depois disso, meu subconsciente levou para a cama um exemplar fantasma de A interpretação multimundos, leu-o noite após noite, cutucou-me enquanto eu dormia.
E se vocês dessem um jeito de encontrar o Richard e a Leslie que eram, dizia ele, antes de terem cometido os piores erros e os melhores acertos? E se pudessem adverti-los, agradecer-lhes, perguntar-lhes qualquer coisa que ousassem? E se pudessem conhecer eus alternativos? O que poderiam eles saber a respeito da vida, sobre a juventude, o envelhecimento e a morte, a carreira, o amor e o patriotismo, sobre a guerra e a paz, sobre responsabilidades, escolhas e conseqüências, a respeito do mundo que vocês consideram real?
Vá embora, eu falei.
Pensa que não pertence a este mundo, com suas guerras e destruição, com seu ódio e violência? Por que vive aqui?
Quero dormir, avisei.
Boa noite, respondeu ele.
Mas as mentes-fantasmas nunca dormem, e em sonhos eu ouvia páginas viradas.
Agora estou acordado, e não consigo afastar aquelas coisas da cabeça. As escolhas que fazemos realmente mudam nossos mundos? E se a ciência afinal estiver certa?
Vínhamos descendo em nosso hidravião de neve e arco-íris, procedentes do norte, sobrevoando montanhas da cor de lembranças antigas, tocadas pela bruma. Aos poucos surgiu diante de nós a cidade, uma vasta panqueca de concreto, assando ao sol de verão, a sobremesa que encerraria um prolongado vôo.
— Quanto falta, meu bem? — perguntei pelo interfone. Leslie levou a mão ao receptor de navegação de radar e rádio, e surgiram números brilhantes no painel de instrumentos.
— Cinqüenta e uma milhas para norte — disse ela. — Faltam 19 minutos. Quer a torre de Los Angeles?
— Obrigado — respondi, sorrindo. Quanto havíamos mudado, desde que nos tínhamos conhecido! Leslie, a quem voar antes aterrorizava, agora era ela própria uma aviadora. Eu, que antes tinha medo do casamento, já estava casado há 12 anos e me sentia ainda como um namorado.
— Alô, torre de Los Angeles — falei ao microfone. — Aqui é Martin Seahawk Quatro Quatro Quatro Alfa, no rumo sul de Santa Mônica. — Em particular, chamávamos nosso hidravião de Growly. Ao controle do tráfego aéreo dávamos o nome oficial.
Como é possível que sejamos os felizardos, pensei, levando uma vida que em crianças tomávamos como sonhos? Em menos de meio século de desafio e aprendizado, de ensaio e erro, cada um de nós tinha passado, com esforço, de tempos duros para um lindo presente que superava nossos sonhos.
— Martin Tríplice Quatro Alfa no contato de radar. — Soou uma voz em nossos fones.
— Há tráfego ali — avisou Leslie. — E ali também.
— Estou vendo. — Olhei para ela também, para aquela atriz transformada em parceira de aventura. Os cabelos louros emolduravam-lhe as curvas suaves do rosto, refletindo luzes e sombras, os olhos azuis de mar que verificavam, sérios, o céu à nossa volta. Que rosto maravilhoso aquela mente moldara!
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