— Os mortais aqui neste quarto não sentem nenhum terremoto, Wookie, e nós, fantasmas, não nos importamos com a queda de escombros…
Neste instante o quarto começou a se agitar convulsivamente, tinta azul-claro num misturador de tintas. O ruído tornava-se cada vez mais intenso, os jovens se espantavam com o que estava acontecendo a Leslie e a mim. A única coisa sólida era minha mulher a meu lado, apressando-se, gritando para os dois.
— Fiquem juntos! — bradou ela.
Num piscar de olhos o quarto de hotel desapareceu com um solavanco, engolfado num ruído de motor e espadanar de água.
Borrifos batiam com força no vidro, e ali estávamos de novo na cabine de nosso hidravião, os ponteiros dos instrumentos se agitando, o mar raso batendo sob nós, o Seahawk já leve, pronto para voar.
Leslie gritou de alívio e deu uma pancadinha carinhosa no painel do avião.
— Alô, Growly! Como é bom rever você!
Puxei o manche em minha direção, e em poucos segundos nossa pequena nave apartou-se da água, deixando para trás um véu de borrifos, e aquelas linhas complicadas do leito marinho se distanciaram.
Como era tranqüilizador estar de volta ao ar!
— Foi o Growly que decolou! — falei. — O Growly nos tirou de Carmel! Mas, em sua opinião, o que foi que empurrou o manete para a frente? O que foi que começou a decolagem?
A resposta veio antes que Leslie pudesse falar, dada por uma voz às nossas costas.
— Fui eu.
Viramos no mesmo instante, surpresos. De repente, a trezentos pés de altitude e sobre um mundo que não conhecíamos, tínhamos um passageiro a bordo.
Imediatamente minha mão preparou-se para empurrar o manche para a frente, imobilizar a intrusa contra o encosto do assento.
— Não se assustem! — disse ela. — Sou amiga! — Ela riu.
— Não fiquem com medo, logo de mim!
Minha mão relaxou, mas não muito.
— Quem…? — começou Leslie, olhando para a mulher.
Nossa passageira, que vestia jeans e uma blusa xadrez, tinha a pele morena, cabelos cor de tinta nanquim que lhe caíam até os ombros, olhos pretos como a meia-noite.
— Meu nome é Pye, e sou para vocês o que vocês são para aqueles que deixaram em Carmel. — Encolheu os ombros, corrigindo-se. — Vezes vários milhares.
Desacelerei o motor, e o barulho diminuiu.
— Como foi que… — falei. — O que está fazendo aqui?
— Achei que poderiam ficar preocupados — comentou.
— Vim para ajudar.
— O que significa vezes vários milhares? — perguntou Leslie.
— Você sou eu no futuro?
Ela assentiu com a cabeça, chegando-se mais para a frente.
— Sou ambos vocês. Não venho do futuro, mas de… — Neste ponto ela cantarolou uma curiosa nota dupla. — …de um presente alternativo.
Eu estava ansioso por saber como ela podia ser nós dois, o que era um presente alternativo, mas acima de tudo desejava saber o que nos havia acontecido.
— Sabe o que foi que nos matou? Onde estamos? — perguntei.
— Morte? — retrucou. — Vocês não estão mortos. Por que imaginam isso?
— Não sei — respondi. — Estávamos nos preparando para aterrissar quando, de repente, houve um zumbido forte e a cidade desapareceu, só isso. O que era civilização vaporizou-se em meio segundo e ficamos sozinhos sobre um oceano que não existe no planeta Terra. E quando pousamos estávamos transformados em fantasmas à procura de nosso próprio passado, das pessoas que éramos quando nos conhecemos, e só elas podem nos ver, as pessoas nos atropelam com carrinhos com roupa suja, nossos braços atravessam as paredes… — Dei de ombros, desanimado. — A não ser por isso, não imaginamos por que pensaríamos que estamos mortos.
A mulher riu.
— Bem, vocês não estão mortos.
Olhei para minha mulher e senti uma onda de alívio.
— Nesse caso, o que foi que aconteceu conosco? — perguntou Leslie.
— É uma coisa relacionada com a eletrônica — explicou —, uma antiga profissão minha. — Olhou para nosso painel de instrumentos e franziu a testa. — Vocês têm aqui transmissores de altíssima freqüência. Receptor de loran, os transmissores, o transponder, pulsos de radar. Poderia ter sido uma interação. Raios cósmicos… — Examinou os instrumentos e fez uma pausa. — Houve um forte clarão dourado?
— Isso!
— Interessante — comentou ela, com um sorriso. — A possibilidade de isso acontecer é de uma em trilhões! — Ela era toda simpatia. — Não devem contar com fazerem essa viagem muitas vezes.
— E a possibilidade de voltarmos? É de uma em trilhões? — perguntei. — Temos um encontro em Los Angeles amanhã. Vamos chegar a tempo?
— Tempo? — Ela se virou para Leslie. — Você está com fome?
— Não. Virou-se para mim.
— Está com sede?
— Não.
— Por que acham que não sentem fome nem sede?
— Nervosismo — respondi. — Tensão.
— Medo! — disse Leslie.
— Você está com medo? — perguntou Pye. Leslie pensou um momento, depois sorriu.
— Agora, não.
Eu não podia dizer o mesmo. Não sou grande apreciador de mudanças.
Pye virou-se para mim.
— Quanto combustível está consumindo? O ponteiro permanecia imóvel.
— Nenhum! — respondi, compreendendo de repente o que se passava. — O Growly não está usando combustível algum, não estamos consumindo nada porque combustível, fome e sede são coisas relacionadas com o tempo, e aqui o tempo não existe!
Pye anuiu.
— O movimento é uma coisa relacionada ao tempo — objetou Leslie —, e nós estamos em movimento.
— Estamos mesmo? — Pye ergueu as sobrancelhas, interrogativamente, virando-se para mim.
— Não me olhe — respondi. — Estamos nos movendo apenas de faz-de-conta? Estamos nos movendo somente…
Pye me dirigiu um sinal de incentivo, como se dissesse que eu estava “esquentando”.
— …na consciência?
Ela levou o dedo à ponta do nariz e abriu-se num sorriso.
— Exatamente! Tempo é o nome que vocês dão ao movimento da consciência. Todo possível acontecimento capaz de ocorrer no espaço e no tempo acontece agora, ao mesmo tempo, simultaneamente.
Não há passado, nem futuro, apenas o agora, ainda que sejamos obrigados a utilizar uma linguagem temporal para conversar. É como…
— Ela olhou para o teto, à procura de uma comparação. — É como a aritmética. Assim que você passa a conhecer o sistema, sabe que todos os problemas numéricos já estão respondidos. O princípio da aritmética já conhece a raiz cúbica de seis, mas podemos levar um pouco do que chamamos de tempo, alguns segundos, para descobrir o que sempre foi.
A raiz cúbica de oito é dois, pensei, a raiz cúbica de um é um.
Raiz cúbica de seis. Está entre um e dois, para mais… Um vírgula oito?
E realmente, enquanto eu fazia o cálculo, sabia que a resposta já estava à espera desde que eu fizera a pergunta.
— Todos os acontecimentos? — perguntou Leslie. — Todo fato possível capaz de acontecer já aconteceu! Não há futuro?
— Nem passado — disse Pye —, nem tempo. Leslie estava aturdida.
— Então, por que passamos por todas essas experiências nesse…
nesse tempo de faz-de-conta, se tudo já está feito?
— O importante não é que tudo já esteja feito, mas sim o fato de dispormos de opções infinitas — respondeu Pye. — Nossas escolhas nos levam a experimentar as coisas que fazemos, e com a experiência compreendemos quem somos.
— Onde é que acontece isso tudo? — perguntei. — Haverá no céu algum armazém enorme, com prateleiras para todos esses possíveis acontecimentos? E podemos escolher um ou outro?
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