— Muito bem — disse ele, olhando para mim como se eu fosse o resultado de um número de ilusionismo. — Não duvide de que você possa continuar a lembrar essas coisas.
— Indefinidamente. Rapaz, você não pode fazer uma só pergunta a seu respeito que eu não seja capaz de responder, e com meus 17 anos a mais tenho mais respostas do que você tem perguntas!
Ele olhou para mim. Um garoto, pensei, sem nenhum fio de cabelo branco. Um pouco de grisalho nos cabelos há de lhe cair bem.
— Pretende perder o tempo que tivermos em conversa aqui no corredor? Sabe que naquele elevador você acabou de se encontrar com a mulher com quem vai… a pessoa mais importante de sua vida e você nem sabe que se encontrou com ela?
— Ela? — Ele olhou para o corredor. — Mas ela é linda! Como é que ela…
— Como, não sei, mas ela o acha atraente. Creia no que digo.
— Certo, acredito. Acredito! — Tirou a chave do aparta mento do bolso da jaqueta. — Vamos entrar.
Nada fazia sentido, mas tudo estava correto. Não estávamos em Los Angeles, e sim em Carmel, Califórnia, outubro de 1972, terceiro andar do Holiday Inn. Antes mesmo que ele metesse a chave na fechadura, eu sabia que o quarto estava cheio de modelos de gaivotas, a controle remoto, construídos para um filme que vínhamos rodando na praia. Alguns dos modelos faziam evoluções maravilhosas, mas outros tinham caído de ponta-cabeça e quebrado. Eu havia levado os destroços para o quarto, a fim de recolá-los.
— Vou chamar Leslie — avisei. — Veja se consegue arrumar isso aqui um pouco, está certo?
— Leslie?
— É a… Bem, há duas Leslies. Uma é a mulher com quem você acabou de subir no elevador, ansiosa para que você achasse um jeito de falar com ela. A linda é a mesma mulher 16 anos depois, minha esposa.
— Não consigo acreditar nisso!
— Por que não arruma o quarto um pouco? — propus. — Voltamos daqui a pouco.
Encontrei Leslie no corredor, alguns apartamentos adiante, de costas para mim, conversando com seu ego mais jovem. Enquanto eu caminhava em sua direção, uma camareira saiu do apartamento ao lado, indo na direção do elevador, empurrando um carrinho com roupa suja.
Sem prestar atenção, ela empurrou o pesado carrinho na direção de minha mulher.
— Cuidado! — gritei.
Tarde demais. Leslie virou-se ao ouvir minha voz, mas o carro atingiu-a de lado, passou através de seu corpo como se ela fosse feita de ar, seguido pela camareira, que a pisoteava, sorrindo para a moça.
— Ei! — exclamou a jovem Leslie, alarmada.
— Oi! — respondeu a camareira. — Bom dia!
Corri para Leslie.
— Está bem?
— Muito bem. Acho que ela não… — Virou-se para a moça. — Richard, quero apresentá-lo a Leslie Parrish. Leslie, esse é meu marido.
Richard Bach.
Achei graça do formalismo da apresentação.
— Como vai? — disse à moça. — Pode me ver? Ela riu, com um brilho nos olhos.
— Pensa que é diáfano? — Nenhum choque, nenhuma suspeita.
A jovem Leslie devia ter considerado tudo aquilo um sonho e resolvera se divertir um pouco.
— Estou só verificando — respondi. — Depois do que acabou de acontecer, não tenho certeza de que faço parte deste mundo.
Aposto que…
Levei a mão à parede, desconfiando que a mão atravessaria o reboco. Foi o que aconteceu, e o pulso entrou até o papel de parede. A jovem Leslie riu a valer.
— Acho que somos fantasmas — comentei.
Então foi por isso que não morremos ao chegar, atravessando a parede do hotel, pensei.
Com que rapidez nos ajustamos a situações inacreditáveis! Se caímos de um cais, logo percebemos que estamos debaixo da água.
Movemo-nos de maneira diferente, respiramos diferente, mas em meio segundo estamos adaptados, embora possamos não gostar da água fria.
O mesmo acontecia ali. Estávamos mergulhados em nosso passado, surpresos por havermos caído nele, fazendo o melhor que podíamos naquele lugar esquisito. E a melhor coisa que podíamos fazer era juntar aqueles dois, poupar-lhes a perda dos anos que havíamos desperdiçado antes de concluirmos que éramos almas irmãs.
Era estranho estar conversando com ela, como se nos encontrássemos de novo pela primeira vez. Que coisa esquisita, pensei.
Ela é Leslie, mas não tenho nenhuma história em comum com ela!
— Quem sabe se, em vez de ficarmos aqui… — Apontei para o corredor. — Richard nos convidou para o apartamento dele. Podemos conversar um pouco lá, acertar as coisas sem que carrinhos com roupa suja nos atropelem…
Ela olhou de relance para o espelho do corredor.
— Eu não pretendia me encontrar com ninguém. Estou um horror — disse, ajeitando os longos cabelos louros debaixo do gorro.
Olhei para minha mulher e não pudemos deixar de rir.
— Ótimo! — exclamei. — Foi nosso último teste com você. Se Leslie Parrish um dia olhar para um espelho e disser que está bem, nesse caso não será a verdadeira Leslie Parrish!
Caminhei na frente em direção ao apartamento de Richard, e bati à porta, sem pensar. Os nós de meus dedos, é claro, sumiram na madeira sem nenhum ruído.
— Acho melhor você bater — falei à jovem Leslie.
Ela bateu, pancadinhas alegres e ritmadas, para mostrar que seu toque era não só eficaz como musical.
A porta abriu-se logo Richard segurava uma gaivota feita de balsa, com um metro de envergadura. No olhar que dirigiu à moça havia uma curiosa mistura de ansiedade e medo.
— Olá! — falei. — Richard, quero apresentá-lo à Leslie Parrish, sua futura mulher. Leslie, esse é Richard Bach, seu futuro marido.
Ele encostou a gaivota na parede e apertou a mão da moça formalmente.
O brilho divertido nem por um instante deixou-lhe os olhos enquanto ela o olhava, apertando-lhe a mão com a maior gravidade possível.
— Muito prazer em conhecê-lo.
— E Richard, esta é minha mulher, Leslie Parrish-Bach.
— Como vai? — cumprimentou ele.
Ficou parado por alguns instantes, olhando de uma das Leslies para outra e para mim, como se um grupo de crianças batesse à sua porta no dia das bruxas.
— Vamos entrar — falou, por fim. — O apartamento está uma bagunça…
E ele falava sério. Se o limpara, nada se notava. Gaivotas de balsa, módulos de controle remoto, baterias, folhas de balsa, lixo nos caixilhos das janelas, tudo cheirando a tinta.
Ele havia colocado na mesinha quatro copos de água, três saquinhos de flocos de milho e uma lata de amendoins. Se nossas mãos atravessam as paredes, pensei, é possível que não tenhamos muito sucesso com os flocos de milho.
— Para sua tranqüilidade de espírito, Miss Parrish — começou ele —, já fui casado, mas nunca mais volto a me casar. Não estou entendendo absolutamente quem são essas pessoas, mas lhe asseguro que não tenho a mínima intenção de lhe fazer qualquer proposta…
— Ah, meu Deus! — exclamou minha mulher, em voz baixa, olhando para o teto. — O discurso anticasamento.
— Por favor, Wookie — sussurrei. — Ele é um rapaz simpático, só está assustado. Não vamos…
— Wookie? — admirou-se a jovem Leslie.
— Desculpe — respondi. — É um apelido que saiu de um filme que vimos juntos há muito… daqui a muito tempo. — Comecei a ter a impressão de que talvez a conversa não seria fácil.
— Vamos começar pelo início — disse minha mulher, organizando o inverossímil. — Richard e eu não sabemos como foi que chegamos aqui, nem quanto tempo isso vai durar, não sabemos para onde vamos. Tudo que conhecemos são vocês, sabemos do passado e do futuro de vocês… ao menos os próximos 16 anos.
— Vocês dois vão se apaixonar um pelo outro — falei. — Já estão apaixonados, só que não sabem que cada um de vocês é a pessoa que o outro amaria se se conhecessem. Neste exato momento, vocês acham que não há no mundo ninguém que seja capaz de compreender vocês ou de amá-los. Mas há, e estão um diante do outro!
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