«0 foguetão encontrava-se num ângulo, meio enterrado naquela diabólica poeira. Era a coisa mais macia, mais delicada, que possas imaginar. Quase insubstancial. O mais leve cotão, na Terra, ofereceria maior resistência. As partículas eram incrivelmente pequenas. Inspeccionei o interior do foguetão. Ele não estava lá. Disse que o foguetão se encontrava num ângulo, mas não tinha a certeza disso; era impos,sível encontrar a vertical sem utilizar equipamento especial, e isso teria levado pelo menos uma hora e um fio de prumo convencional, que não pesava praticamente nada, seria inútil, pois a cabeça não chegaria para manter a linha esticada… Na altura, não fiquei surpreendido por ele não ter tentado levantar voo. Entrei. Verifiquei imediatamente que Thomas improvisara qualquer coisa para determinar a vertical, mas que não funcionara. Havia ainda muita comida, mas nenhum oxigénio. Devia tê-lo transferido todo para o tanque do fato e partido.
— Porquê?
— Sim, porquê? Ele estivera ali três dias. Naquele tipo de foguetão há apenas um assento, um pára-brisa, os comandos, alavancas e uma escotilha na retaguarda. Sentei-me lá um bocado e compreendi que nunca seria capaz de o encontrar. Durante um segundo, pensei que talvez ele tivesse partido precisamente quando eu aterrara, que utilizara o seu propulsor a gás para regressar ao Prometheus e se encontrava a bordo enquanto eu andara à toa por cima daquelas estúpidas pedras… Saltei do foguetão tão energicamente que voei para cima. Sem nenhum sentido de direcção, sem nada. Sabes o que acontece quando vemos uma centelha na escuridão total? Os olhos fantasiam, há raios, visões… Bem, com o sentido do equilíbrio pode acontecer uma coisa semelhante. Com uma gravidade zero não há problema, uma pessoa acostuma-se. Mas quando a gravidade é extremamente fraca, como naquela planetóide, o ouvido interno reage erradamente, se não irracionalmente. Uma pessoa pensa que está a subir velozmente, como uma peça de fogo-de-artifício, depois a descer, etc. E sucedem-se as sensações de girar e rodar dos braços, das pernas e do tronco, como se as partes do nosso corpo mudassem de lugar e a cabeça não estivesse no lugar que lhe pertence…
«Foi assim que eu voei até colidir com uma parede, ricochetear, embater em qualquer coisa, ser outra vez atirado e conseguir agarrar-me a uma pedra saliente… Estava lá alguém deitado: o Thomas.
Ela continuou calada. Na escuridão, o Pacífico rugia.
— Não, não é o que tu pensas. Ele estava vivo. Sentou-se imediatamente e eu liguei o rádio. A distância era tão curta que podíamos comunicar perfeitamente.
«És tu? ouvi-o perguntar.
«Sou eu, respondi.
«Parecia uma cena de uma farsa ridícula, de tão espantosa. Mas foi assim que aconteceu. Levantámo-nos.
«Como te sentes? perguntei.
«Óptimo. E tu?
«A resposta surpreendeu-me um pouco, mas redargui:
«Muito bem, obrigado. E lá em casa também estão todos bem.
«Idiota, sem dúvida, mas eu pensei que ele tinha falado assim para mostrar que estava a aguentar-se, compreendes?
— Compreendo.
— Quando parou junto de mim, vi-o como uma mancha de escuridão mais densa à luz da minha lâmpada de ombro. Passei as mãos pelo seu fato. Não estava avariado.
«Tens oxigénio suficiente? perguntei, pois isso era o mais importante.
«Oue importa? respondeu-me.
«Perguntei a mim mesmo que devia fazer a seguir. Pôr o seu foguetão a funcionar? Seria demasiado arriscado. Para dizer a verdade, nem sequer me sentia muito satisfeito. Estava receoso… ou melhor, inseguro. É difícil explicar. A situação era irreal, eu pressentia algo de estranho nela, embora não soubesse exactamente o quê. Nem sequer sabia ao certo o que sentia. A não ser que não estava satisfeito com aquele miraculoso encontro. Tentei imaginar uma maneira de salvar o foguetão. Mas isso, pensei, não era o mais importante. Primeiro precisava de saber em que estado Thomas se encontrava. Estávamos ali parados os dois, na noite sem estrelas.
«Oue andaste a fazer durante este tempo todo? perguntei. Isso era importante. Se ele tivesse tentado fazer alguma coisa, nem que fosse recolher algumas amostras minerais, seria bom sinal.
«Diversas coisas, respondeu-me. E tu, que andaste a fazer. Tom?
«Tom? perguntei e senti-me gelar, pois Tom Arder morrera havia um ano e ele sabia-o muito bem.
«Tu és o Tom, não és? Reconheço a tua voz.
«Não disse nada. Ele tocou-me no fato com a mão enluvada e disse:
«Desagradável, não é? Nada para ver, e nada de nada. Eu tinha-o imaginado de modo diferente. E tu?
«Pensei que estava a imaginar coisas relacionadas com o Arder. Era uma coisa que tinha acontecido a alguns de nós.
«Não, isto aqui não é muito interessante, respondi-lhe. Vamo-nos embora, Thomas, que dizes?
«Embora? Mostrou-se surpreendido. De que estás a falar. Tom?
«Eu já não prestava atenção ao seu Tom.
«Queres ficar aqui? perguntei.
«E tu não queres?.
«Pensei que estava a mangar comigo, mas achei que já bastava de brincadeiras estúpidas.
«Não, respondi. Temos de regressar. Onde está a tua pistola?
«Perdi-a quando morri.
«O quê?
«Mas não me importei. Um morto não precisa de pistola."
«"Está bem… Anda, eu ato-te a mim e partimos.
«"Endoideceste, Tom"? Partimos para onde?"
«Regressamos ao Prometheus.
«"Mas não está aqui…"
«"Está além. Deixa-me atar-te."
«"Espera.
«E empurrou-me.
«Falas de modo estranho. Não és o Tom!"
«"Pois não. Sou o Hal."
«Também morreste? Quando?"
«Compreendi então o que se passava e resolvi fazer o jogo dele.
«Oh. há alguns dias! Mas deixa-me atar-te…"
«Ele não queria. Começámos de brincadeira, a gracejar, ao princípio como que bem-humoradamente. mas depois as coisas tornaram-se mais sérias. Tentei agarrá-lo, mas com o fato não pude. Que havia de fazer? Não podia deixá-lo nem por um momento sequer: não voltaria a encontrá-lo segunda vez. Os milagres náo acontecem duas vezes. E ele queria ficar ali, como morto. Depois, quando pensei que o convencera, quando me pareceu disposto a concordar e lhe pedi que me segurasse no propulsor a gás, ele encostou a sua cara à minha, tão encostada que quase o vi através dos vidros, e gritou: Sacana! Enganaste-me! Estás vivo!" E disparou contra mim.
Havia algum tempo que sentia a cara de Eri encostada às minhas costas. Ao ouvir as últimas palavras, estremeceu, como se a percorresse uma corrente eléctrica, e cobriu-me a cicatriz com a mão. Ficámos um bocado em silêncio.
— Era um fato muito bom — prossegui. — Não se rasgou. Entrou no meu corpo, partiu-me uma costela, dilacerou-me alguns músculos, mas não se rasgou. Nem sequer perdi a consciência, mas o meu braço direito imobilizou-se e uma sensação quente disse-me que sangrava. No entanto, durante um momento devo ter ficado confuso, pois quando me levantei o Thomas desaparecera. Procurei-o. a tactear de gatas, mas em vez dele encontrei o propulsor. Devia tê-lo deixado cair imediatamente após ter disparado. Com o propulsor consegui regressar à nave. Eles viram-me no momento em que saí da nuvem. Olaf aproximou a nave e puxaram-me para dentro. Disse que não tinha conseguido encontrá-lo. Que encontrara apenas o foguetão vazio e o propulsor me caíra da mão e disparara quando eu tropeçara. O fato tinha duas camadas. Um bocado do forro metálico soltou-se e eu tenho-o aqui. debaixo da costela.
De novo silêncio e o bramir de uma onda, em crescendo, como se tomasse balanço para um salto através de toda a praia, como se o fracasso das suas inúmeras predecessoras a não tivesse desencorajado. Ao desfazer-se espraiou-se, tomou-se uma pulsação suave, mais próxima e mais silenciosa. até que deixou por completo de se ouvir.
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