Não trouxe nada comigo, nem sequer um casaco. Desnecessário — disseram. Deixaram-me ficar com a minha camisola preta: passaria. Mas tive de lutar pela camisa. Disse que aprenderia a prescindir gradualmente das coisas. Na própria rampa, sob o ventre da nave, onde nos encontrávamos empurrados pela multidão, Abs estendeu-me a mão, com um sorriso compreensivo:
— Agora calma, hem?
Lembrar-me-ia. Não lhe esmaguei os dedos. Estava perfeitamente calmo. Ele queria dizer mais qualquer coisa, mas eu poupei-lhe a perda de tempo: virei-lhe as costas, como se não tivesse notado nada, subi a escada e entrei. A hospedeira conduziu-me mesmo para a fente, através das filas de lugares. Eu não tinha querido um compartimento isolado. Ter-lhe-iam dito? O meu lugar desdobrou-se silenciosamente. Ela ajustou-lhe as costas, sorriu-me e afastou-se. Sentei-me. As almofadas eram tão macias que nos afundávamos nelas, como em toda a parte. As costas do meu lugar eram tão altas que quase não via os outros passageiros. Já me habituara a aceitar as cores vivas do vestuário das mulheres, mas, no caso dos homens, ainda suspeitava, irracionalmente, de afectação, e acalentava a secreta esperança de encontrar algum normalmente vestido — o que era um deplorável reflexo. As pessoas sentaram-se rapidamente; ninguém tinha bagagem. Nem sequer uma pasta ou um embrulho. Nem mesmo as mulheres, que pareciam mais do que os homens. À minha frente iam duas mulatas de peles verde-papagaio, tufadas como penas — aparentemente, aquela espécie de estilo pássaro estava na moda. Mais adiante, um casal com uma criança. Depois das ofuscantes luzes de selénio dás plataformas e dos túneis, e da insuportavelmente berrante e incandescente vegetação das ruas, a luz do tecto côncavo parecia, a bem dizer, uma suave incandescência. Como não sabia que fazer com as mãos, pu-las nos joelhos. Já estava toda a gente sentada. Oito filas de lugares cinzentos, uma brisa perfumada de abeto, um abafar das conversas. Esperava qualquer prenúncio acerca do lançamento, quaisquer sinais, a ordem para apertar os cintos, mas não aconteceu nada. Através do tecto fosco começaram a mover-se sombras ténues da frente para a retaguarda, como recortes de papel de pássaros. «Que diabo vêm a ser estes pássaros?», perguntei a mim mesmo. «Significarão alguma coisa?» Estava entorpecido da tensão para tentar não fazer nada errado. Havia já quatro dias. Começara logo no primeiro momento. Ficava invariavelmente para trás de tudo quanto acontecia e o esforço constante para compreender a mais simples conversa ou situação transformava essa tensão em algo horrivelmente semelhante ao desespero. Tinha a certeza de que acontecia o mesmo aos outros, mas não falávamos disso, nem mesmo quando estávamos juntos, sozinhos. Limitávamo-nos a gracejar acerca do nosso músculo, da força excessiva que permanecia em nós — e na verdade precisávamos de estar atentos a esse aspecto: ao princípio, quando me queria levantar, saltava direito ao tecto, e qualquer objecto que segurasse parecia feito de papel, vazio. Mas aprendi depressa a controlar o corpo. Ao cumprimentar as pessoas, já lhes não esmagava os dedos. Era uma coisa fácil de conseguir, mas, infelizmente, a menos importante.
O meu vizinho da esquerda — corpulento, bronzeado, com olhos que brilhavam de mais (de lentes de contacto?) — desapareceu de súbito. Os lados do seu lugar expandiram-se e subiram, a formar uma espécie de casulo com o formato de um ovo. Algumas outras pessoas desapareceram em cubículos semelhantes. Sarcófagos inchados. Que faziam eles? Mas eu encontrava coisas desse género a toda a hora e tentava não olhar embasbacado, desde que me não dissessem directamente respeito. Por curioso que pareça, tratava cora indiferença as pessoas que ficavam boquiabertas a olhar para nós, ao saberem quem éramos. O seu espanto não me importava muito, embora apercebesse imediatamente de que não havia nele a ínfima admiração. Quem despertava a minha antipatia eram os que olhavam por nós, o pessoal da Adaptação. Sobretudo o Dr. Abs, porque me tratava como um médico trataria um paciente anormal, fingindo — e muito bem — que estava a lidar com alguém perfeitamente normal. Quando isso se tomava impossível, gracejava. Estava farto da sua abordagem directa e da sua jovialidade. Se o interrogassem a tal respeito (ou, pelo menos, eu assim pensava), o homem da rua diria que Olaf ou eu éramos semelhantes a ele, não nos consideraria assim tão diferentes dele; o que era invulgar era apenas a nossa experiência passada. Mas o Dr. Abs, e todos os outros funcionários da Adaptação, estavam melhor informados, sabiam que nós éramos, decididamente, diferentes. Essa diferença não constituía nenhuma distinção, mas sim, apenas, uma barreira à comunicação, à mais simples troca de palavras, irra! ao mero abrir de uma porta, uma vez que os puxadores tinham deixado de existir havia… enfim, havia 50 ou 60 anos!
A partida foi inesperada. Não houve absolutamente nenhuma mudança na gravidade, nenhum som chegou ao interior hermeticamente fechado, as sombras continuaram a flutuar serenamente no tecto. Deve ter sido um hábito estabelecido há muitos anos, um velho instinto, que me disse que em dado momento estávamos no espaço. Pois tratou-se de uma certeza e não de uma suposição.
Mas havia mais qualquer coisa que me ocupava. Estava meio deitado, com as pernas estendidas, imóvel. Tinham-me deixado fazer a minha vontade com muita facilidade. Nem Oswann se opusera muito à minha decisão.
Os argumentos em contrário que ouvira de Abs tinham sido inconvincentes — eu próprio poderia ter arranjado melhores. Só que tinham insistido numa coisa: que cada um de nós voasse separadamente. Nem sequer tinham ficado aborrecidos comigo por ter levado Olaf a rebelar-se (sim, porque se não fora eu ele teria sem dúvida nenhuma concordado em ficar mais tempo). Isso tinha sido estranho. Eu esperara complicações, qualquer coisa que estragasse o meu plano no último momento, mas não acontecera nada e ali estava, a voar. Aquela viagem decisiva terminaria dentro de 15 minutos.
Era evidente que a minha intenção, assim como a maneira como me apresentara perante eles para defender uma partida antecipada, os não surpreendera. Deviam ter catalogada uma reacção desse tipo, devia tratar-se de um padrão de comportamento característico de um cajmeirão como eu, designado por um número de série apropriado nas suar tabelas psicotécnicas. Tinham-me autorizado a voar. Porquê? Porque a experiência lhes dissera que não conseguiria desenvencilhar-me sozinho? Mas como poderia isso ser, se toda aquela fuga para a «independência» envolvia voar de um terminal para outro, onde alguém da secção terrestre da Adaptação estaria à minha espera e tudo quanto eu teria de fazer seria encontrá-lo num lugar antecipadamente combinado?
Aconteceu qualquer coisa. Ouvi vozes que se erguiam. Debrucei-me do meu lugar. Diversas filas à minha frente uma mulher empurrou a hospedeira que, com um movimento lento e automático, como que resultante do em purrão — embora este não tivesse sido assim tão forte —, recuava pela coxia gbaixo, enquanto a mulher repetia: «Não consinto! Não deixes aquilo tocar-me!» Não pude ver a cara de quem falava. O companheiro puxava-lhe o braço e dizia qualquer coisa para a acalmar. Qual seria o significado daquela pequena cena? Os outros passageiros não lhe ligaram a mínima importância. Pela centésima vez senti-me possuído por um sentimento de incrível alienação. Levantei a cabeça e olhei para a hospedeira, que parara a meu lado e sorria como antes. Não se tratava de um sorriso meramente exterior, de polidez facial, de um sorriso destinado a ocultar um incidente desagradável. Ela não fingia estar calma: estava de facto calma.
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