E então a cidade estrondejou, estremeceu, fundiu-se em água que batia no pára-brisa do hidravião. Durante muito tempo, depois da decolagem, Leslie manteve a mão no manete, e ninguém disse uma só palavra.
— Por quê? — exclamei. — O que pode haver de tão maravilhoso no assassínio em massa que durante dez mil anos ninguém na história do mundo descobriu alguma solução melhor para os problemas do que matar todos que discordam? Será esse o limite da inteligência humana, ainda somos homens de Neanderthal? Og tem medo, Og mata! Será… Não consigo acreditar que todo mundo tenha sido sempre tão… estúpido! Que ninguém jamais…
A frustração impede o fim das frases. Olhei para Leslie, para as lágrimas em seu rosto. A mesma causa que me levara a uma fúria sem fim, nela provocara uma tristeza infinita.
— Tatiana… — disse ela, abalada como se tivéssemos esperado as bombas. — Ivan… Que pessoas… Ah, meu Deus! — Rompeu em soluços.
Peguei os controles e segurei a mão dela. Como gostaria que Pye estivesse ali! O que ela diria para mitigar nossa cólera e nossas lágrimas?
Maldição, pensei, precisamos morrer assim como idiotas?
Apesar de toda a beleza que podemos alcançar, de toda a grandeza que tantos já atingiram, será crível que a morte sobre venha quando um imbecil qualquer aperta um botão e acaba com a luz? Não haverá alguém naquele desenho lá embaixo que já tenha imaginado alguma coisa…
Ouvi ou imaginei?
Vire à esquerda. Siga em frente até o desenho se tornar âmbar.
Não saberia dizer se Leslie ouvira as palavras ou não, mas ela não perguntou por que tínhamos feito a curva ou para onde íamos.
Tinha os olhos fechados, e ainda assim as lágrimas rolavam-lhe pelo rosto.
Apertei a mão de Leslie, despertando-a do desespero.
— Vamos, meu amor — falei. — Acho que vamos ver como é um mundo sem guerras.
Verifiquei as rodas, puxei o manete para trás. A quilha tocou a água, o mundo transformou-se em borrifos e…
Estávamos de cabeça para baixo, provavelmente a seis mil pés de altitude, o avião com o nariz apontado para baixo.
Por uma fração de segundo passou por minha mente a idéia de que nosso hidravião se descontrolava, mas logo percebi que não era Growly que descia a pique. Estávamos num potentíssimo avião de caça.
A carlinga era pequena. Se Leslie e eu não fôssemos fantasmas, não caberíamos ali como estávamos, um ao lado do outro, atrás do piloto.
Bem à nossa frente, isto é, quinhentos pés abaixo, outro caça manobrava, tentando escapar desesperadamente. O que víamos pelo pára-brisa gelou-me o sangue: um círculo brilhante superposto às asas do outro aparelho, o ponto reluzente de nosso visor de mira bem em cima de sua carlinga.
Um mundo sem guerras? Depois do que havia acontecido em Moscou, estávamos prestes a ver alguém ir pelos ares!
Uma metade de mim encolheu-se, horrorizada, a outra a tudo assistia impassível. Isto não e um avião a jato, notou a segunda metade, também não é um Mustang, um Spitfire ou um Messerschmitt, isto não é nenhum avião que já tenha existido. O piloto de caça que eu fora também observava, aprovador. Boa técnica, pensei. O piloto buscara o alvo, aproximara-se dele, acompanhara o alvo como se estivesse colado nele, investira novamente.
Leslie estava rígida a meu lado, a respiração presa, com os olhos pregados no avião lá embaixo, enquanto a terra se aproximava velozmente. Passei o braço ao redor dela, apertei-a com força.
Se eu pudesse pegar o manche e desviar o avião, se pudesse puxar o manete para trás, teria feito isso. Havia barulho demais na carlinga para gritar alguma coisa a um piloto absorto no ataque.
Nas asas do avião enquadrado em nosso visor viam-se as estrelas vermelha e azul da República Popular da China. Ah, meu Deus, pensei, por acaso a insânia espalhou-se para todos os mundos existentes? Estamos em guerra com a China também?
O avião chinês assemelhava-se em tudo a um aparelho de acrobacias, pintado de azul-claro na parte de baixo, de verde e marrom na de cima. E apesar de todo o ruído e da ação, nosso indicador da velocidade do vento indicava apenas 550 quilômetros por hora. Se isto é uma guerra, pensei, onde estão os jatos? Em que ano estamos?
O alvo deu uma guinada, com tanta força que das pontas das asas saíram trilhas de vapor. Nosso piloto guinou também, não sendo apanhado de surpresa. Não sentimos a aceleração da gravidade que atuava sobre ele, mas víamos seu corpo esmagado pela compressão.
Sou eu, pensei. Sou um piloto outra vez. Malditas forças armadas! Quantas vezes terei de cometer o mesmo erro? Estou prestes a matar uma pessoa, e hei de me arrepender disso o resto de minha vida…
O alvo virou com força para a direita, e a seguir, desesperado, inverteu a curva. Caiu exatamente dentro do círculo brilhante de nosso visor de mira, e o eu-alternativo apertou o gatilho no manche.
Metralhadoras dispararam, fogos de artifício instalados nas asas, e imediatamente saiu um jato de fumaça branca da coberta do motor do avião que ia à frente. Nosso piloto falou duas palavras.
— Peguei! — disse. — Quase… — A voz era de Leslie! Não era um Richard alternativo que pilotava aquela máquina, era uma Leslie alternativa!
No visor, piscou uma mensagem: ALVO DANIFICADO.
— Droga! — exclamou a mulher. — Vamos, Linda… Em vez de afastar-se, ela acelerou e aproximou-se ainda mais do alvo que fora atingido, apertou o gatilho e disparou uma longa rajada. Sentimos o cheiro de pólvora na nacela.
Agora a fumaça branca transformou-se em negra, e o óleo do motor de sua vítima atingiu nosso pára-brisa.
ALVO DESTRUÍDO.
— Agora sim! Agora sim! — disse a pilota. Ouvimos o rádio, baixo.
— Líder Delta, guine para a direita! Agora! Agora/ Saia para a imitai A mulher não virou a cabeça para olhar, jogou o manche para a direita, mudou de direção como se sua vida dependesse daquilo. Tarde demais.
No mesmo instante nosso pára-brisa ficou negro, coberto de óleo quente de motor, e uma fumaça escura irrompeu da coberta do motor, que tossiu e parou. A hélice cessou de girar.
Soou uma campainha na nacela, como o sinal que encerra um assalto de boxe. ABATIDO, foi a mensagem que surgiu no visor de mira.
Imediatamente tudo serenou, e só se ouvia o silvo do vento do lado de fora, a fumaça que saía do depósito de óleo no motor.
Virei a cabeça para olhar atrás de nós, e o que vi foi um avião que se precipitava, rugindo, sobre nós, irmão gêmeo daquele que acabáramos de despachar. Seu piloto ria e acenava, feliz.
Nossa pilota levantou o visor do capacete e acenou de volta.
— Ora, dane-se, Xiao — resmungou. — Você vai pagar por isso!
O outro passou por nós, numa mancha indistinta de cores berrantes. Depois o nariz de seu avião se levantou, descrevendo uma apertada curva ascendente, a fim de encontrar nosso ala, que investia contra ele, louco por vingança. Em meio minuto, as duas aeronaves, traçando semicírculos uma em volta da outra, tinham sumido de vista.
Não havia chamas em nossa carlinga, apenas um fio de fumaça que subia agora do depósito de óleo, e para uma pessoa que tinha acabado de perder uma batalha, nossa comandante estava mais que calma.
— Líder Delta! — veio pelo rádio. — Sua câmara está desligada!
Uma luz aqui avisa que você foi abatida. Diga-me que não é verdade!
— Desculpe, chefe — disse ela. — Às vezes se ganha, às vezes se perde. Foi Xiao Xien Ping, ele me pegou.
— Desculpe, desculpe. Conte isso a seus fãs. Apostei dez dólares em que Linda Albright voltaria hoje com uma tríplice vitória, e agora eles bateram asas! Onde vai aterrissar?
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