— Se nosso governo descobrir… — disse Tatiana.
— …não precisará mais construir míssil algum — completou Leslie. — Podem ficar sentados calmamente e desarmados. Não podemos atacar porque nossos mísseis têm pedras no lugar de motores.
Bem, acho que poderíamos despachá-los para Moscou, fazer com que disparem, a controle remoto, mas de que adianta…
— …seis dias depois morremos todos, vítimas de nossa própria radiação — falei. — Bombardeamos vocês e perdemos o jogo de futebol da segunda-feira à noite! Ouçam, vocês dois, a primeira regra do capitalismo é Criar Consumidores. Acham, por um minuto que seja, que desperdiçaríamos consumidores preciosos, que perderíamos a receita da indústria de cosméticos, da publicidade? Pelo amor de Deus! Não compreendem?
Ivan suspirou, olhando para Tatiana. Ela fez um gesto ligeiro.
— A URSS também tem seus segredos — disse ele. — Par?
ganharmos a corrida armamentista, é preciso que os Estados Unidos nos subestimem, que não percebam as mudanças. Os Estados Unidos devem acreditar que para a União Soviética a ideologia é mais importante que a economia.
— Vocês estão construindo submarinos, porta-aviões — disse eu. — Seus mísseis têm motores que funcionam.
— Claro. Mas por acaso a CIA notou que nossos submarinos não transportam mísseis, já ficou a imaginar por que nossos submarinos possuem escotilhas de vidro? — Ivan fez uma pausa e olhou de novo para a mulher. — Devemos contar a eles?
Tatiana assentiu com firmeza.
— Os submarinos trazem lucros… — começou ele.
— … passeios turísticos em águas profundas! — acrescentou ela. — O primeiro país que puder levar turistas ao leito marinho ficará rico!
— Pensam que construímos porta-aviões? — perguntou Ivan.
— Pensem bem. Não se trata de porta-aviões, são condomínios flutuantes! Cidades sem poluição, com as maiores quadras de tênis do mundo, auzeiros para qualquer parte a que se desejar ir. Ar condicionado, talvez.
— O programa espacial… Sabe quantas pessoas estão na fila a fim de subir ao espaço, fazer um vôo de dez minutos, dispostas a pagar o preço que pedirmos? — indagou ele, irônico. — No dia em que a União Soviética abrir falência, vai fazer calor na Sibéria!
Foi minha vez de espantar-me.
— Vocês vão vender passeios espaciais? E o comunismo — E daí? — retrucou Ivan, dando de ombros. — Os comunistas também gostam de dinheiro.
Leslie virou-se para mim.
— Não lhe falei?
— O que foi que ela lhe disse? — perguntou Ivan.
— Falei a ele que a guerra fria acabou com uma minissérie da televisão chamada Amerika. Pela primeira vez, nós, americanos, assistimos ao que era, supostamente, o objetivo da União Soviética: ocupar os Estados Unidos, substituir nosso sistema pelo de vocês. — Leslie dava a impressão de se impacientar à simples menção do assunto.
— Levantamo-nos da poltrona, depois de 16 horas de televisão, quase mortos de chateação, incapazes de acreditar que algum povo, algum sistema político podia ser tão enfadonho. Era preciso ver com nossos próprios olhos, de modo que o turismo em direção à Rússia triplicou da noite para o dia.
— Éramos tão chatos assim? — perguntou Tatiana.
— Não no sentido que estão pensando — respondi. — Há no sistema soviético aspectos que são realmente chatos… mas a maior parte da política americana também mata de chateação! O que resta, de ambos os lados, não é tão ruim. Vocês sacrificam a liberdade pela segurança, nós sacrificamos a segurança pela liberdade. Vocês não têm pornografia, mas nós não temos leis contra o direito de viajar para onde se quiser. Estas são as nossas escolhas. Mas ninguém é tão chato que tenha chegado a hora de acabar com o mundo!
— Em qualquer conflito — disse Leslie —, podemos nos defender ou podemos aprender. A corrida armamentista tornou o mundo um lugar impossível de se viver. O que aconteceria se preferíssemos aprender? Se em vez de falarmos vocês me assustam, disséssemos voeis me interessam?
— Achamos que, aos poucos, bem devagar, o mundo está resolvendo tentar isso — falei.
O que estávamos procurando aprender com eles ali? pensei.
Eles somos Nós? Americanos são soviéticos são chineses são africanos são árabes são asiáticos são escandinavos são indianos? Diferentes expressões do mesmo espírito, engendradas por diferentes opções, diferentes caminhos no desenho infinito da vida no espaço-tempo?
Nossa conversa foi além da meia-noite, enquanto falávamos sobre aquilo de que gostávamos e de que não gostávamos com relação às superpotências em que vivíamos. Rimos muito durante nossa entrevista coletiva particular, falando a respeito de mísseis de papelão e navios-condomínios, discorrendo sobre turismo espacial. Sentíamo-nos como velhos amigos, percebendo que tínhamos amado aqueles dois durante toda nossa vida.
Que modificação causou o fato de conhecê-los! Depois daquela noite, já não seríamos capazes sequer de pensar em começar uma guerra contra Tatiana e Ivan Kirilov, tanto como não pensaríamos em disparar um lança-chamas contra nós próprios. Todo medo que pudéssemos ter deles desapareceu quando deixaram de ser estereótipos do Império do Mal para se transformar em seres viventes como nós, em pessoas que tentavam também entender o sentido das coisas. Para nós quatro, o círculo vicioso tinha chegado ao fim.
— Aqui na União Soviética temos uma história a respeito do lobo e do coelho bailarino — disse Ivan, pondo-se de pé para demonstrar sua versão de uma dança popular.
— Psiu! — exclamou Tatiana, levantando as mãos para pedir silêncio. — Ouçam!
Ele olhou para ela, surpreso.
A noite lá fora começara a gemer, num ruído cavo e lento, como se toda a cidade sentisse dores.
Ouviam-se sirenes, centenas delas, cada vez mais intensas a cada instante, sacudindo as janelas.
Tatiana ficou de pé num salto, de olhos arregalados.
— Vanya! — gritou. — Americanos!
Corremos para as janelas. Por toda a cidade brilhavam holofotes.
— Isso não pode ser verdade! — exclamou Leslie.
— Mas é verdade! — respondeu Ivan. Voltou-se para nós, estendendo as mãos num gesto de angústia. Depois correu a um armário, tirou dele dois sacos de lona, entregou um à mulher, e os dois saíram correndo, deixando a porta aberta.
Daí a um momento ele reapareceu, olhando-nos com uma expressão de incredulidade.
— O que estão esperando? — gritou. — Só temos cinco minutos! Venham!
Descemos correndo, nós quatro, dois lances de escadas e nos metemos na balbúrdia das ruas, uma multidão aterrorizada que se acotovelava na direção de entradas do metrô. Pais carregavam os filhos pequenos, crianças agarravam-se nos casacos dos adultos para acompanhá-los, velhos procuravam de todos os modos seguir em frente. Algumas pessoas mostravam-se apavoradas, empurravam e gritavam, outras andavam calmamente, cientes de que era inútil fugir.
No meio da multidão, Ivan segurou Tatiana e afastou-se da massa desesperada. Estava sem fôlego.
— Vocês… Richard e Leslie — disse, reprimindo as lágrimas, sem raiva nem ódio contra nós. — Vocês são as únicas pessoas que podem ir embora. — Parou para recobrar o fôlego, balançando a cabeça. — Não venham conosco. Vão… voltem para o lugar de onde vieram. — Fez um gesto de cabeça, esforçou-se por sorrir. — Voltem para o mundo de vocês e contem a eles. Expliquem o que é isso! Não deixem isso acontecer! — Ivan puxou Tatiana pela mão e os dois desapareceram na multidão.
Leslie e eu continuamos, invadidos por um impotente desespero, naquela rua de Moscou, vendo o pesadelo se tornar real, sem nos importarmos se íamos embora, se vivíamos ou morriamos. Por que contar a nosso mundo? Seu mundo nada ignorava, Ivan: sabia disso e mesmo assim se matou. Seria o nosso mundo diferente?
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