Ou deseja conservar esse texto apenas para você?
— Quero divulgá-lo, naturalmente!
— E que nome dará à sua dádiva?
O que ele estará querendo dizer, pensei.
— Isso é importante?
— Se você não o fizer, outros o farão. Chamarão a isso o livro de Richard.
— Entendo. Isso mesmo. Darei a elas um nome qualquer… As páginas.
— E você protegerá As Páginas! Ou permitirá que outras pessoas as alterem, que modifiquem nelas seja lá o que for que não compreenderem, qualquer coisa de que não gostarem?
— Não! Não poderá haver mudança alguma! Elas foram dadas pela Luz! Nada de mudanças!
— Realmente? Nem mesmo uma linha aqui e ali, por bons motivos? “A maior parte das pessoas não compreende?” “Isso pode ofender certas pessoas?” “A mensagem não está clara?”
— Nada de mudanças!
O velho arqueou a sobrancelha, inquisitivo.
— Quem é você para insistir?
— Eu estava aqui quando foram entregues! Eu as vi surgir da Luz, com meus próprios olhos!
— Portanto — disse ele —, você se tornou o Guardião das Páginas?
— Não é preciso que seja eu. Pode ser qualquer pessoa, desde que prometa não haver modificações.
— Mas alguém será o Guardião das Páginas?
— Acho que sim.
— E com isso temos o começo do sacerdócio Paginista.
Aqueles que sacrificarem a vida para proteger uma escola de pensamento tornam-se seus sacerdotes. No entanto, qualquer nova ordem, qualquer novo caminho, é mudança. E a mudança representa o fim do mundo tal como ele existe.
— Essas páginas não representam nenhuma ameaça — falei. — São amor e liberdade!
— E o amor e a liberdade são o fim do medo e da escravidão.
— Claro! — respondi, atônito. Aonde estaria ele querendo chegar? Por que estava Leslie silenciosa? Por acaso ela não concordava que aquilo era…
— Os que lucram com o medo e a escravidão ficarão satisfeitos com a mensagem das Páginas?
— Provavelmente não, mas não podemos deixar que essa… luz… se perca!
— Promete proteger a luz? — perguntou ele.
— Claro que sim!
— E os demais Paginistas, seus amigos, a protegerão também?
— Sim.
— E se os que tiram proveito do medo e da escravidão convencerem o rei desta terra que você é perigoso, se avançarem sobre sua casa, chegarem com espadas, como você protegerá as Páginas?
— Eu as levarei daqui! Fugirei!
— E quando for seguido, apanhado, encurralado?
— Se precisar lutar, lutarei — respondi. — Há princípios mais importantes do que a vida. Vale a pena morrer por algumas idéias.
O velho suspirou.
— E assim tiveram início as Guerras Paginistas. Couraças, espadas, escudos e bandeiras, cavalos e fogo, sangue nas ruas. Não serão guerrinhas! A você se juntarão milhares de crentes fervorosos, dezenas de milhares, rápidos, fortes e hábeis. Mas os princípios das Páginas desafiam os governantes de toda nação que mantêm o poder através do medo e das trevas. Outras dezenas de milhares de pessoas lutarão contra vocês.
Por fim comecei a entrever o que Le Clerc desejava dizer.
— Para ser conhecido — continuou ele —, para distinguir-se de outros grupos, vocês precisarão de um símbolo. Que símbolo escolherão? Que sinal aplicarão em seus estandartes?
Meu coração contristou-se diante do peso de suas palavras, mas insisti.
— O símbolo da luz — respondi. — O sinal será uma chama.
— E assim sucederá — disse ele, lendo uma história que não fora escrita — que o Sinal da Chama se chocará com o Sinal-da-cruz nos campos de batalha do leste da França, e a Chama prevalecerá, numa vitória gloriosa, e as primeiras cidades edificadas sob o signo da Cruz serão arrasadas pelo fogo purificador dos exércitos de vocês.
Com isso, a Cruz se juntará ao Crescente, e, juntas, suas legiões combinadas brotarão do sul, cem mil homens em armas a se oporem a seus oitenta mil.
Ah, pare, pensei em dizer. Sei o que vem em seguida.
— E para cada homem, mulher ou criança da Cruz e do Crescente que vocês matarem a fim de proteger a dádiva que receberam, cem outros odiarão seu nome. Todo irmão, filho, esposa, pai e amigo dos mortos odiarão os Paginistas e suas amaldiçoadas Páginas pelo assassínio do ente querido. E todo irmão, filho, esposa, pai e amigo de um Paginista odiará cada cristão e sua maldita Cruz, cada muçulmano e seu amaldiçoado Crescente pela morte do ente querido!
— Não! — exclamei. Cada uma de suas palavras era verdadeira.
— E durante as guerras, serão erigidos altares. Em torno das Páginas, serão construídas catedrais e cúpulas. Os que buscarem a compreensão e o crescimento espiritual ver-se-ão sobrecarregados com novas superstições e novos limites: sinos e símbolos, regras e cantos, cerimônias, preces e paramentos, incenso e oferendas de ouro. O ouro se transformará na essência do Paginismo. Ouro para construir templos maiores, ouro para que espadas convertam os incréus e salvem-lhes as almas.
— E quando você morrer, Primeiro Guardião das Páginas, ouro para a fabricação de efígies suas. Haverá estátuas imensas, grandiosos afrescos. pinturas que darão a essa cena o prestígio da arte. E veja, entretendo nessa tapeçaria: aqui a Luz, ali as Páginas, acolá o céu se abrindo para o Paraíso. Aqui se vê Richard, o Grande, ajoelhado em sua armadura reluzente; aqui, ela, o maravilhoso Anjo da Sabedoria, com as Páginas Sagradas nas mãos; ali, o idoso Le Clerc, em sua humilde morada nas montanhas, testemunhando a visão.
Ufa, pensei. Impossível!
Mas nada havia de impossível. Era inevitável.
— Divulgue essas páginas para o mundo, e eis que no mundo nascerá outra poderosa religião, outro sacerdócio, outros Nós e outros Eles, uns contrapostos a outros. Daqui a cem anos, um milhão de pessoas terão morado pela verdade que temos nas mãos; dentro de mil anos, dezenas de milhões. Tudo por causa desse papel.
Não havia em sua voz sinal algum de amargura, nem mostrava pessimismo ou cansaço. Jean-Paul le Clerc transmitia a sabedoria de toda uma vida, a plácida aceitação do que havia aprendido, Leslie estremeceu.
— Quer meu casaco? — perguntei-lhe.
— Não, meu amor, obrigada. Não é o frio.
— Não é o frio — repetiu Le Clerc. Abaixou-se, pegou um graveto em brasa da fogueira e o encostou nas páginas douradas. — Mas isso a aquecerá.
— Não! — bradei, arrancando-lhe as páginas das mãos. — Vai queimar a verdade?
— A verdade não pode ser queimada. A verdade fica à espera do momento em que alguém se disponha a encontrá-la — retrucou ele.
— O que queimará são estas páginas. Cabe a você escolher. Gostaria que o Paginismo se torne a próxima religião deste mundo? — Ele sorriu. — Vocês serão santos da igreja…
Olhei para Leslie e vi em sua expressão o mesmo horror que eu sentia em mim.
Leslie pegou o graveto e levou-o aos cantos do pergaminho.
Logo tínhamos um fogaréu sob os dedos, e deixamos que os fragmentos calcinados caíssem ao chão. Queimaram durante mais um pouco e se apagaram.
O velho suspirou de alívio.
— Que noite abençoada! — disse. — É muito raro termos a oportunidade de salvarmos o mundo de uma nova religião! — A seguir, voltou-se para minha mulher, sorrindo, esperançoso. — Teremos salvado mesmo?
Leslie também sorriu para ele, com os olhos cheios de amor.
— Salvamos, sim. Não há em nossa história, Jean-Paul le Clerc, uma só palavra a respeito dos Paginistas ou de suas guerras.
Entreolharam-se durante algum tempo, e depois, com uma mesura em nossa direção, o velho virou-se e subiu a montanha, no escuro.
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