— Desligue o motor! Agora! Pouse!
Encontramo-nos ao luar, a alguns metros de distância de uma tenda grosseira. O teto era feito de peças de couro costuradas, com as emendas impermeabilizadas com piche; as paredes eram de tecido cor de terra, que adquiria um matiz avermelhado à luz dos archotes de sentinelas. Do deserto ao redor vinha o bruxuleio de centenas de fogueiras na areia, vozes ébrias, ásperas e fortes, o retinir e o escoicear de cavalos.
Na entrada da tenda postavam-se dois guardas, que teríamos tomado por centuriões se não estivessem tão maltrapilhos. Cobertos de cicatrizes e cansados, eram homens baixos, com túnicas mal-ajambradas, presas com fivelas de bronze, e capacetes. Calçavam botas de couro e traziam espadas curtas e punhais à cinta.
Fogo e escuridão. Estremeci. Em que foi que nos metemos?
Olhando para as sentinelas, virei a cabeça para Leslie, peguei-lhe a mão. Eles não nos viam, mas que estardalhaço ela faria se eles nos pudessem enxergar!
— Tem alguma idéia sobre o que estamos fazendo aqui? — murmurei.
— Não, meu amor, quem pousou foi você — sussurrou ela.
Perto dali, dois homens começaram a brigar, gritando e investindo um contra o outro.
— Imagino que a pessoa que precisamos ver está dentro da tenda — falei.
Leslie olhou para ela, apreensiva.
— Se se trata de um aspecto alternativo de você, não há por que nos preocuparmos, não é?
— Talvez não tenhamos de encontrar essa pessoa. Acho que houve um engano. Vamos embora.
— Richie, há um motivo para estarmos aqui, alguma coisa que devemos aprender. Não está curioso para saber do que se trata?
— Não — respondi. Eu sentia tanta curiosidade em relação à pessoa no interior da tenda quanto a que sentiria pela aranha no meio de uma teia de trinta metros. — Tenho maus pressentimentos.
Leslie hesitou um pouco, olhou em volta, inquieta.
— Você tem razão. Só uma olhadinha rápida, e vamos embora.
Só quero ver quem…
Antes que eu a pudesse deter, ela atravessou a parede da tenda.
Um segundo depois, ouvi seus gritos.
Corri atrás dela, e vi um vulto monstruoso tentando agarrar-lhe o pescoço, com uma faca na mão.
— NÃO!
Dei um salto para a frente no momento exato em que o agressor de Leslie caía através de seu corpo. Surpreso, ele deixou a faca cair sobre o tapete.
O homem era baixo, atarracado e muito ágil. Tomou a pegar a arma antes mesmo que ela parasse de rolar, pôs-se de pé e investiu contra mim sem uma palavra. Saltei de lado, da melhor maneira possível, mas ele percebeu o movimento e me atingiu em cheio no estômago.
Não me movi, enquanto ele atravessava meu corpo, como uma pedra através de chamas, indo bater num dos madeiros que sustentavam a tenda. A coluna inclinou-se e o teto ficou frouxo.
Tendo perdido a faca no choque, o homem deu meia-volta, sacudiu a cabeça, tirou um segundo punhal da bota e voltou a investir, aos saltos. Atravessou meu corpo à altura do ombro, e terminou caindo sobre um tamborete de madeira, de arestas agudas, derrubando um castiçal.
Não tardou para que estivesse novamente de pé. Seus olhos eram estreitas fendas coléricas, e os braços curvavam-se em nossa direção como os de um lutador, ainda o punhal na mão. Agora, porém, em vez de atacar, aproximou-se lentamente, atento, examinando-me.
Não ultrapassava o ombro de Leslie, mas aqueles olhos tinham um brilho assassino.
De repente ele virou-se, levou a mão à gola da blusa de Leslie e a puxou para baixo, num gesto relâmpago, e pôs-se a olhar, estupefato, para a mão vazia.
— Agora, chega! — falei.
O homem virou-se num salto, passando a faca por minha cabeça.
— NADA MAIS DE VIOLÊNCIA! — gritei.
Ele parou, fitando-me. O que seus olhos tinham de mais assustador não era a crueldade, mas sim a inteligência. Quando aquele homem se punha a destruir, nada acontecia por acaso.
— Você fala? — perguntei, embora não esperasse que ele soubesse inglês. — Quem é você?
Ele fez uma carranca, resfolegando. Então, para minha surpresa, respondeu. Qualquer que fosse sua língua, nós nos entendíamos!
Bateu no peito.
— At-Elah — disse, orgulhoso. — At-Elah, o Flagelo de Deus!
— At-Elah? — admirou-se Leslie. — Átila?
— Átila, o huno?
O guerreiro riu de meu choque. Depois seus olhos se estreitaram outra vez, — Guarda! — berrou, Uma das sentinelas postadas à porta logo entrou, com o punho encostado ao peito, à guisa de saudação, Átila fez um gesto em nossa direção.
— Não me avisou que eu teria convidados — disse, calmo. O soldado assumiu uma expressão de terror, correndo os olhos pela tenda.
— Mas não há convidado algum, Grande Comandante!
— Não há um homem aqui? Nem uma mulher?
— Não há ninguém.
— É só, Deixe-me sozinho.
O guarda saudou-o, virou-se e saiu rapidamente em direção à porta. Átila, no entanto, foi mais rápido. Sua mão saltou como uma cobra dando o bote e enterrou o punhal, com um baque surdo, nas costas do guarda.
O efeito foi espantoso, como se o golpe não tivesse matado o guarda, e sim o dividido em dois. O corpo caiu praticamente sem barulho na entrada, enquanto seu fantasma seguia de volta ao posto, sem saber que tinha morrido.
Leslie olhou-me, aterrorizada.
O assassino retirou o punhal do corpo.
— Guarda! — gritou novamente o assassino. O outro sentinela apareceu. — Tire isso daqui, Ouvimos a saudação, e depois o corpo sendo arrastado Átila voltou em nossa direção, metendo o punhal ensangüentado na bainha, presa à bota.
— Por que? — perguntei.
Ele deu de ombros, sacudindo a cabeça num gesto de desdém.
— Se meu guarda não enxerga o que eu vejo em minha própria tenda,
— Não — insisti. — Por que é tão perverso! Por que tantas mortes, tanta destruição? Não só esse homem, mas cidades inteiras, povos inteiros que você destrói, sem razão alguma!
Átila encheu-se de desprezo.
— Covarde! Quer que eu não leve em conta as agressões de um império do mal? Os imperialistas romanos e seus lacaios? Infiéis! Deus me manda varrer os infiéis da terra, e eu obedeço às ordens de Deus!
— Seus olhos reluziram. — Ai de vós, terras do Ocidente, pois lançarei sobre vós meu flagelo; sim, o flagelo de Deus matará vossos varões; sob as rodas de minha carruagem cairão vossas mulheres, sob os cascos de meu cavalo, vossas crianças!
— A palavra de Deus! — falei. — Sílabas vazias, mais poderosas que flechas, pois ninguém se atreve a opor-se a elas. Com que simplicidade os espertos usurpam o poder aos tolos!
Seus olhos se arregalaram.
— Você está usando minhas palavras!
— Primeiro, tome-se impiedoso — prossegui, chocado com o que dizia —, depois afirme ser o Flagelo de Deus, e seus exércitos acabam com aqueles demasiado rústicos para imaginar um Deus de bondade, demasiado assustados para desafiar um Deus maléfico. Grite que Deus promete mulheres, laranjas, vinho, todo o ouro da Pérsia quando seus soldados morrerem com o sangue dos infiéis na espada, e tem-se então uma força que transforma cidades em escombros. Para ganhar poder, convoque a palavra de Deus, pois é ela que mais facilmente converte o medo em raiva contra qualquer inimigo que você escolher.
Entreolhamo-nos, Átila e eu. Aquelas eram as palavras dele.
Tinham sido também minhas. Ele sabia. E eu também.
Como fora fácil ver-me em Tink e Atkin, naqueles mundos de suave criatividade, como era difícil ver-me naquele poço de ódio. Por tanto tempo eu carregara o antigo guerreiro enjaulado dentro de mim, trancafiado em sua masmorra portátil, que me recusava a reconhecê-lo quando o via a plena luz.
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