— Você se importa se eu tomar um banho rápido, se eu limpar o Growly?
Leslie olhou-me interrogativamente.
— Um simbolismo, acho.
Ela me beijou no rosto, entendendo meu pensamento.
— Até você descobrir como é que se pode viver a vida de outra pessoa, que tal ser responsável pela vida de Richard Bach e deixar que Átila seja responsável pela dele?
Tocamos as ondas a meia velocidade, sem parar, sentindo os borrifos a 80 quilômetros por hora. Esguichos de neve grossa deixavam esteiras brancas enquanto eu manobrava o leme, para a esquerda e a direita, afugentando a lembrança daquela vida torpe.
Puxei o manete para trás, pretendendo fazer com que a nuvem de borrifos diminuísse e nós amerisássemos, ao diminuir a velocidade.
Foi o que aconteceu, mas, naturalmente isso nos levou a outro mundo.
Ao pararmos, um campo relvado se estendia à nossa volta, como um lago esmeraldino, cercado de montanhas, que refletia o crepúsculo de nuvens escarlates. Suíça, pensei num átimo. Pousamos num cartão-postal da Suíça. A distância, no vale, via-se um bosque, casas repentinas, tetos muito inclinados, a torre de uma igreja. Uma carroça na estrada da aldeia, puxada não por um trator ou um cavalo, mas por uma espécie de vaca.
Não se avistava vivalma. Nenhum caminho, nem mesmo uma trilha. Apenas aquele lago de relva, pontilhado de flores silvestres, meio emoldurado por alcantis rochosos.
— Você acha que, por acaso… — falei. — Onde estamos?
— Na França — respondeu Leslie. — Veja. — Apontou para uma fenda na rocha, onde um velho estava ajoelhado no chão, ao lado de uma pequena fogueira. Estava soldando. Faíscas branco-amareladas chispavam na rocha em torno dele.
— O que um soldador pode estar fazendo aqui, Leslie? — O que ele está consertando?
— Não está soldando nada. Está rezando. — Saiu na direção do homem e eu a segui, resolvido a manter-me calado. Leslie agia como se conhecesse tanto o local quanto o homem.
Mais de perto, verifiquei que ela estava com a razão. Não se tratava de um maçarico de acetileno. Não havia som nem fumaça, e uma coluna refulgente, da cor do sol, pulsava a cerca de um palmo de altura e a menos de um metro do ancião.
— …e ao mundo darás, tal como recebeste — pronunciou uma voz que vinha da luz. — A todos que anseiam por conhecer a verdade de onde viemos, a razão de existirmos e o caminho que se estende na direção de nossa morada eterna.
Paramos alguns metros atrás do homem, transfixados pela visão.
Eu já vira aquele esplendor uma vez, havia muitos anos. Ficara aturdido com um único vislumbre acidental daquilo que até hoje ainda chamo de Amor, e a luz que contemplávamos naquele momento era a mesma. Tanta era sua resplendência que transformava o mundo numa nota de pé de página, um opaco asterisco. Havíamos pousado ali no momento em que a vida daquele homem estava sendo transformada para sempre.
No instante seguinte, a luz desaparecera. Sob o ponto em que ela brilhara jaziam laudas de papel dourado, um texto em suntuosa caligrafia.
O homem continuou ajoelhado, de olhos cerrados, sem tomai consciência de nossa presença.
Leslie adiantou-se, estendeu a mão para o manuscrito fúlgido e pegou-o. Espantou-me que sua mão não atravessasse o pergaminho.
Embora esperássemos runas ou hieróglifos, encontramos as palavras em inglês. Claro, pensei. O velho as leria em francês, um persa em farsi. É o que ocorre quando se trata de uma revelação — o que importa não é a língua, e sim a comunicação de idéias.
Vós sois criaturas da luz, lemos. Da luz viestes, para a luz irás, e a cada passo que dais cerca-vos a luz de vosso ser infinito.
Leslie virou uma página.
Por escolha vossa habitais agora um mundo que vós construístes. Aquilo que tendes no coração transformar-se-á em verdade, é aquilo que mais amais, nisso vós vos transformareis.
Outra página.
Não temais, nem vos turbeis com a aparência que são as trevas, com o disfarce que é o mal, com o manto vazio que é a morte. Pois escolhestes essas coisas como desafio, pois elas são as pedras em que afiais o gume de vosso espírito. Sabei que em toda vossa volta está a realidade do amor e que a cada momento, ao alcance de vossas mãos está o poder de transformar vosso mundo através do que aprendestes.
Eram muitíssimas as páginas, centenas delas. Nós as passávamos com reverência. Quem escreveu essas palavras, pensei, era uma alma avançada.
Sois a vida, inventando a forma. Não vos matam mais as espadas ou anos do que as portas que atravessais, passando de um cômodo a outro. Cada cômodo vos dá uma palavra que pronunciar, cada passagem é uma canção para cantardes.
Olhei para Leslie, cujos olhos estavam tão marejados quanto os meus. Se aquele texto era capaz de nos comover tanto, a nós, pessoas do século XX, pensei, que efeito não teria exercido sobre as pessoas daquele século, o… XII!
Virávamos as páginas, rapidamente. Não havia uma só palavra de ritual, nenhuma instrução relativa a culto, nenhuma invocação de fogo e destruição sobre inimigos, nada de desastres para os incréus, deuses cruéis como o de Átila, era um texto escrito para o benevolente ser interior. Não mencionava igreja alguma, nem organizações, bispos, sacerdotes ou rebanhos; nenhuma referência a orações, coros, liturgia ou dias santificados.
Fossem aquelas idéias divulgadas naquele século, pensei, e ter-se-ía uma chave para o reconhecimento do poder sobre a fé, e o terror desapareceria. Com elas, o mundo poderia evitar a Idade Média!
O velho abriu os olhos, viu-nos e pôs-se de pé. Não demonstrava medo, como se houvesse lido aquele texto até o fim.
Olhou-me de relance, depois ficou contemplando Leslie por um longo momento.
— Sou Jean-Paul le Clerc. E vocês são anjos.
Antes mesmo que me recuperasse do espanto, enquanto Leslie ainda o olhava, assombrada, o homem riu, contente.
— Notaram a Luz?
— Inspiração! — exclamou minha mulher, entregando-lhe as páginas douradas.
— Realmente, inspiração. — Ele fez uma mesura, como se ela, ao menos, fosse um anjo. — Essas palavras são a chave da verdade para qualquer pessoa que as leia, são a vida para quem lhes der ouvidos.
Quando eu era menino, a Luz prometeu que as páginas viriam ter às minhas mãos na noite em que vocês aparecessem. Agora sou velho, e vocês vieram, tal como elas.
— Elas mudarão o mundo — comentei.
O velho me olhou de uma maneira estranha.
— Não.
— Mas foram-lhe dadas…
— …como uma prova — disse ele.
— Prova?
— Viajei muito — falou. — Estudei os textos sagrados de cem religiões, de Catai até as terras nórdicas. — Seus olhos piscaram. — E, apesar de meus estudos, aprendi. Toda grande religião começa com a luz. No entanto, só os corações conservam a luz. Páginas escritas não podem fazê-lo.
— Mas o senhor tem nas mãos… — comecei. — Deve lê-las. É maravilhoso!
— O que tenho nas mãos é papel. Se entregarmos essas palavras ao mundo, serão amadas e compreendidas por aqueles que já conhecem essa verdade. Antes, porém, precisaremos lhes dar um nome.
E isso representará a morte delas.
— Não. Dar um nome a algo de belo representa matá-lo? — perguntei.
O velho me olhou com surpresa.
— Dar nome a uma coisa não faz mal algum. Dar nome a essas idéias equivale a criar uma religião.
— Por quê?
Ele sorriu, estendendo-me o manuscrito.
— Entrego essas páginas a você…?
— Richard.
— Entrego a você, Richard, essas páginas que vieram diretamente da Luz do Amor. Quer passá-las, por sua vez, ao mundo, a povos ansiosos por conhecer o que dizem, às pessoas que não tiveram o privilégio de estar neste lugar no momento em que houve a dádiva?
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