Até aí nada de novo, mais uma das nossas farras. Se as meninas da redação da revista vissem-me em um momento como este formariam uma opinião diferente de mim. Queria ver-me como um desses astros do rock, exuberantes em suas loucuras. Mas sabia que essas minhas bagunças não passavam de ocasiões pontuais, como um escoteiro que vai para uma rave uma vez por ano. Não passava de uma brincadeira estúpida que acabava em uma ressaca terrível e com a promessa de não beber nunca mais. Porém, desta vez, a coisa teve consequências sérias.
O autorama continuava no sótão. Genaro e eu subíamos lá sempre que as meninas dormiam e ficávamos pilotando aqueles carrinhos por horas a fio, conversando sobre qualquer coisa sem importância até baixar um pouco o efeito das drogas e podermos dormir. Foi numa dessas madrugadas, ou manhãs, ou mesmo tardes, em que eu era a única pessoa desperta quando, vadiando pelo sótão buscando sei lá o que, acabei tropeçando em um antigo baú. No começo, a visão daquele baú não se revelou como uma memória consciente. Foi mais como uma náusea, uma pontada na boca do estômago. Logo virou uma sensação de ter perdido alguma coisa. Só então me veio à mente um turbilhão de lembranças enquanto escutava minha própria voz dizendo “meu baú do Pinocchio”.
Como podia ter esquecido tão completamente daquele baú e da minha fixação pelo boneco de lenha? Durante 1 ou 2 anos (e isso é muito tempo na vida de uma criança) fui completamente obcecado pelo Pinocchio. Guardava no baú todas as relíquias do meu personagem preferido: coleção de miniaturas, figurinhas, postais... e lá estava minha edição ilustrada da obra de Collodi. Folheei o livro e, fascinado, reconheci uma digital de chocolate deixada por mim em uma das páginas há muitos anos atrás. Tive um flash daquele dia. Era um dia chuvoso e estava lendo debaixo da mesa de meu pai enquanto devorava sozinho uma caixa de bombom. Devia ter seis anos. Lembro que no dia seguinte passei mal de tanto chocolate que comi e tiveram que levar-me ao hospital. Para que melhorasse logo, meus pais prometeram que assim que ficasse bom eles levariam-me ao parque. Ficar doente era legal, porque recebia a atenção de todos. No final do livro, encontrei uma foto que usava como marca página: eu, mamãe e papai no parque do Pinocchio. Mamãe estava radiante este dia. Tinha sido o dia mais feliz da minha vida até então.
Continuei folheando o livro e acabei lendo ele inteiro de um só fôlego. Quando Genaro e as meninas acordaram, recomecei com a leitura, agora em voz alta para eles. Ao terminar, segui falando sobre tudo que lembrava daquela época e especificamente sobre aquele dia no parque. Enchi tanto a paciência deles que finalmente uma das garotas nos disse “ei, por que a gente não visita o lugar? Olha só, continua funcionando”. Tomo o celular da sua mão e navego pelo site do parque.
– Tenho uma ideia melhor – diz Genaro mostrando um anúncio no computador. – Por que você não compra a casa do Pinocchio? Olha só, está à venda.
E realmente estava. O que Genaro chamou de “a casa do Pinocchio” era na realidade uma mansão histórica do século XVII onde viveu Carlo Collodi, autor do clássico. Por módicos 19 milhões de euros, poderia ser dono da propriedade que inclui uma mansão principal, um palacete de verão, um dos mais significativos exemplos de jardins cenográficos do período barroco tardio, além de um restaurante e até uma casa de borboletas! O parque fica há poucos metros e ao que parece todo o povoado depende do turismo do lugar. Vivem do Pinocchio. Comprar a Villa Garzoni era uma piada, mais uma das muitas anedotas de Genaro. Mas, sem querer, ele tocou uma corda muito profunda que já estava ressoando por cerca de 24 horas de delírio saudosista, depois de sabe-se lá quantos dias de loucura, depois de anos de tédio e toda uma vida sem sentido. Era isso. Era disso que precisava!, algo espontâneo e inocente, algo puro e cheio de vida. Precisava redescobrir o Pinocchio dentro de mim, precisava mudar, precisava de um marco que ajudasse-me a divisar essa mudança. A Villa Garzoni seria o palco de um recomeço. Liguei para o senhor Lupo e lhe disse que queria comprar a propriedade. Custou-me um pouco convencê-lo de que não estava bêbado, porque na verdade estava. Tive que ligar de volta mais tarde e ele só levou a sério minha ordem quando ameacei demitir-lhe e finalmente prometi uma bela recompensa caso pudesse mudar-me para a casa no dia seguinte. Ele riu do meu absurdo e seu riso atiçou meu orgulho fazendo-me levar a coisa a sério:
– Senhor Lupo, dizem que com dinheiro e um bom advogado a gente consegue o que quiser. Como dinheiro neste caso não é o problema, espero que o advogado também não seja. Você nunca falhou comigo e nunca deixei de pagar. Temos um acordo, ou será que o velho lobo, sem perder o vício, já está perdendo o pelo?
“Dinheiro não é o problema” – essa é a senha que põe em marcha não apenas o senhor Lupo, mas praticamente toda gente, o sinal verde que faz correr o fluxo. Senhor Lupo gagueja um pouco. Já andou sondando a coisa entre uma ligação e outra e diz que comprar a propriedade não seria nenhum problema uma vez que o principal responsável pelo lugar foi amigo de meu pai. O difícil da situação era querer mudar-me no dia seguinte.
– Tente entender, Enzo. Comprar uma mansão histórica no valor de 19 milhões administrada por uma fundação nacional não é o mesmo que comprar um trailer.
Senhor Lupo estava no viva voz. Genaro e as garotas acompanhavam com muito interesse toda a história. Estava sem dormir direito há alguns dias, embriagado por todo o tipo de drogas e principalmente pelas mais fortes entre elas: uma poderosa nostalgia infantil, um orgulho incurável e um senso de humor absurdo.
– Você tem razão, senhor Lupo. Se fosse um trailer, sairia da loja com ele logo depois de pagar. Mas como é uma mansão cheia de burocracia, vou dar um dia a mais para resolver tudo que for necessário. Depois de amanhã, espero estar assinando papéis na minha nova residência.
– Mas Enzo...
– Mas nada, Lupo. Você conhece as regras. Eu pago, você se vira. Até logo.
Desliguei o telefone. Genaro sorria com o canto da boca. As meninas olhavam-me como se eu fosse maluco. Ficamos na expectativa por algumas horas até o telefone tocar novamente. Era o senhor Lupo dizendo que o sinal estava verde. Não pude evitar uma comemoração infantil, como se tivesse feito um gol. As meninas caíram na risada. Por uma noite, fui feliz como uma criança, a ponto de contagiar a todos. Por uma noite, não éramos mais náufragos. Vivíamos em um mundo onde tudo era possível, um conto de fadas. Por uma noite, sentíamos como se fôssemos amigos de verdade.
Foi assim que adquiri a Villa Garzoni.
Dois dias depois, estava assinando papéis na habitação onde se hospedou Napoleão Bonaparte.
Foi difícil conciliar o sono na primeira noite que passei no casarão. Sentia a sobriedade como um delírio. O fígado, mal acostumado, cobrava pelos mesmos caprichos dos últimos dias. As têmporas, qual tambores, marcavam o compasso daquele meu corpo embarcação marejando suores frios. Esperava que um passeio noturno pelo jardim pudesse desanuviar minha mente da ressaca. Desci pela Rua dos Pobres, passando pelas estátuas da velha e do casal de camponeses. Cruzei o bosque de carvalho até a escadaria da fonte e passei direto pela gruta de Netuno. A lua estava em quarto minguante, o que permitia-me ver, para minha surpresa, uma silhueta solitária encurvada sobre o jardim. Minha reação normal seria evitar o contato com um empregado, ainda mais considerando minha indisposição naquela hora. Inobstante, sem saber bem o porquê, ouvi minha própria voz dando boa noite àquela sombra.
– Que tal amigo, não acha que é um pouco tarde para cuidar das flores?
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