E quem sabe com o tempo, Kya mude de ideia.
Desde que viemos morar juntos ando mais tranquilo. Enquanto termino mais um livro de contos, minha primeira novela, escrita anos atrás, está a ponto de ser lançada. Impressionante como acabo publicando sem me preocupar em publicar. Conheci o editor por acaso. É que acho que a arte tem pernas próprias. O tempo que tenho entre um trabalho e outro, entre ganhar o pão de cada dia, prefiro aproveitar escrevendo ao invés de correr atrás de publicação. Não escrevo por glória, riqueza ou reconhecimento, mas por devoção e autoconhecimento. Sinto pena dos escritores que perdem o sono pensando em publicar ao invés de irem dormir (e despertar) com seus escritos.
E com mais um livro saindo do forno, deixo para trás mais uma pele de serpente. Me liberto das dores do parto. Mas um livro não é um filho, já nasce independente, não necessita do cuidado do pai. Cai no mundo sobre suas patas e segue seu próprio caminho. Sozinho, encontra quem tem que encontrar. E saio mais uma vez de banda. “Há quem sambe diferente noutras terras, outra gente, um batuque de matar”.6
Dessa vez, não parto só. Kyara vem comigo. Andiamo in Italia que mi fará piaccere conoscere il bel paese.7 Minha papelada está pronta, foi reconhecida minha cidadania portuguesa. Agora só falta resolver o que toca a Kyara. Sem lenço, sem documento, quem diria, nos resta o casamento.
3Trecho da música “Tem Dó” de Baden Powell e Vinicius de Moraes.
4Trecho da música “Quero que Vá Tudo pro Inferno”. de Erasmo Carlos e Roberto Carlos.
5Termo utilizado por Wilhelm Reich.
6Trecho da música Brasil Pandeiro de Assis Valente.
7“Vamos à Itália que terei prazer em conhecer o belo país”.
01/11/2014
Ao preparar o café, encontrei um papelzinho escrito “amor” dentro do açucareiro. Achei curioso. Coisa do Jorge, pensei. Dentro da minha caneca favorita em formato de flamingo havia outro bilhetinho: amor. Na geladeira, em cima da tapioca havia outro. Amor. Com minha escova de dente, amor. Amor diante do espelho, dentro da cômoda. Amor entre minhas calcinhas. E amor até [ ]. Como posso ficar chateada com esse peste?
Por mais que não concorde com sua filosofia, principalmente no que diz respeito a poligamia, tenho que dar o braço a torcer que ele vive aquilo que diz. Ontem mesmo se queixava de que o mundo carecia de amor. Muita gente acha o mesmo. Mas Jorge não se conforma em constatar, tem que fazer alguma coisa a respeito. Isso para ele é ser artista. Alguns mais, outros menos, todos temos imaginação. Mas, o artista, segundo ele, não se contenta em imaginar: quer ter entre as mãos aquilo que imagina. O artista é um mago, ele diz, capaz de materializar no plano físico o que foi criado no mundo dos sonhos.
Sim, ele faz o que diz e tenta ser o que imagina. Como poderia ser diferente no que diz respeito ao amor? Quantos discursos seus não tive que ouvir sobre o amor livre? Deveria imaginar que ele não seria capaz de mudar assim da noite para o dia. Fato que depois que entramos em acordo sobre ser fiel, ele nunca mais falou sobre relação aberta. Disse que iria tentar se abster e até nisso foi sincero, pois “tentar” não é o mesmo que fazer.
Dois anos se passaram e preferi não saber o que se passava. Seu comportamento comigo não mudou em nada. Como pode dormir com outra e me ver com a mesma cara lavada? É que ele não acha que isso seja errado, não sente culpa ou talvez seja simplesmente um grandessíssimo filho da puta. Culpa, puta. Estou convivendo tanto com ele que começo a falar em rima.
Não queria ver nem saber até o dia em que ele fechou de golpe o computador. O que estava escondendo? Na primeira oportunidade, fui ler sua caixa de entrada. E lá estava uma lista infame com nome, data e descrição de cada rapariga com quem ele transou.
Fiquei doente, não podia comer, emagreci 7 kg em duas semanas, o que foi a única coisa boa disso tudo. Não sei o que fazer. Estamos de viagem marcada, planejando o casamento. Falei com seu irmão e pedi as nossas amigas em comum para conversar com ele pois não quero confrontá-lo. De que adianta? Ele sempre bateu na tecla da privacidade. Vai ficar puto quando souber que mexi nas coisas dele. Talvez... Depois do casamento, com a viagem… Deixando para trás esse Pernambuco cheio de piriguete, ele sossegue o facho.
Quem sabe com o tempo ele mude.
Sou assim, entre fazer e não fazer, acabo não fazendo nada e espero que as coisas se resolvam por si só. Tonta.
E a faculdade me tira o sono, literalmente. Esse TCC está me matando. Pensei em trancar o curso e terminar quando voltar para o Brasil. Jorge ficou uma fera, disse que não vamos a lugar nenhum sem levar meu diploma na mochila. Contestei que para alguém tão metido a revolucionário ele estava sendo bem conservador com isso. Ele disse que o diploma é como uma carteirinha para entrar no circo, que os palhaços que nos empregam fazem questão de conferir. E até achar um meio de vida decente a gente ainda terá que aturar muita palhaçada. E além disso, ele disse, seria uma verdadeira burrice estudar quatro anos e ir embora sem se formar. Odeio quando ele está certo.
Ele está buscando uma casa na Itália para a gente fazer trabalho voluntário em troca de teto e comida. Disse que é uma boa ideia para a gente praticar o italiano conhecendo gente local sem gastar nada. Nos primeiros meses, sem falar direito o idioma, será difícil conseguir trabalho. Acho a ideia um tanto arriscada, mas não é a primeira vez que ele viaja, deve saber o que faz. De todos os anúncios que viu, me mostrou o que achou mais interessante:
Procura-se voluntários para serviços gerais em casarão antigo na Toscana.
Busco dois voluntários para trabalhar em um antigo casarão. As tarefas podem incluir jardinagem e manutenção da casa. O compromisso é de 5 horas diárias, 5 dias por semana. O proprietário tem grande apreço pelas artes. Dá-se preferência a pessoas com aptidões artísticas que estejam interessadas em compartilhar ideias. O local exato será disponibilizado após a seleção. A casa é grande e oferece o conforto digno de um dândi. No tempo livre, os voluntários poderão usufruir todas as comodidades do espaço comum. Os interessados devem enviar e-mail ao endereço abaixo respondendo às seguintes perguntas:
1. Qual é a sua principal motivação?
2. Qual o seu pintor favorito e por que?
3. Qual o último livro que você leu?
Contato: Alessandro.
Sinceramente acho maluquice, o anúncio sequer tem fotos. Que pessoa séria faria perguntas como essas? Para mim isso é golpe, parece coisa de filme, não pode ser verdade. Mas Jorge se apega aos detalhes. Disse que um idiota qualquer não usaria a palavra “dândi”, que isso é coisa de algum excêntrico rico hedonista e que de qualquer forma essa é a cilada em que todo artista cai uma hora ou outra: a de ter a proteção de um patrono. Com ele não poderia ser diferente.
Não sei. Entre o trabalho de conclusão da faculdade e a dor que sinto com suas traições já não tenho cabeça para nada. Tento fingir que estou bem, tento enganar a mim mesma, mas a verdade é que desde que li aquela lista infame das suas amantes alguma coisa parece ter se quebrado dentro de mim. Meu medo é que não tenha conserto. Jogo minhas expectativas na viagem e espero que mudar daqui resolva tudo, mas não sei se um dia serei capaz de perdoar Jorge de verdade, se o que quebrou de fato não foi nossa relação e que por amor e dor siga juntando os cacos sem perceber que não se pode remediar o irremediável.
Ou quem sabe... quem sabe ele tenha razão. O que a gente precisa é de mais amor.
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2. Os ingleses conquistaram o mundo porque não aguentavam mais a própria cozinha.
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