Aterrador
Moreira, Renato da Silva
ISBN: 978-84-18766-57-2
1ª edição, abril de 2021.
Arte de capa: Ganjarts
Editorial Autografía
Calle de las Camèlies 109, 08024 Barcelona
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Sumário
1 PLANTIO I PLANTIO
Nós, gatos, já nascemos pobres, porém já nascemos livres. 02/10/2012 1. Rei morto, rei posto. Não me venha achar ruim porque você me conheceu assim 01/11/2014 2. Os ingleses conquistaram o mundo porque não aguentavam mais a própria cozinha. Caia na estrada e perigas ver 21/03/2015 3. Persiga aquilo que ama ou acabará amando aquilo que encontra.
2 GERMINAÇÃO São as águas de março fechando o verão / é a promessa de vida no teu coração 12/04/2015 4. Se não quer que ninguém saiba, não o faça. O amor, o sorriso e a flor se transformam depressa demais
3 CRESCIMENTO 20/03/2016 5. A solidão é uma péssima conselheira 23/07/2016 6. Jogar e nunca perder não pode ser Nem vem de garfo que hoje é dia de sopa 13/03/2017
4 COLHEITA 7. Quem semeia vento, colhe tempestade Dê um chute no patrão 04/06/2018 8. Quem ri por último, ri melhor Pra cima deles passarinho! Um dia qualquer Epílogo
Dedico este livro a todos os seres, sem exceção:
aos intelectuais que o desprezarão,
às traças que o comerão sem se preocupar com seu significado,
a todas as pessoas e bichos que irão ignorá-lo por completo
e também àqueles capazes de ver o próprio reflexo.
“O que é um espelho? É o único material inventado que é natural.
Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver,
quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio...
esse alguém percebeu o seu mistério de coisa”.
Clarice Lispector
Nós, gatos, já nascemos pobres, porém já nascemos livres.1
Sexta-feira, apareceu uma gatinha lá em casa. Gatinha mesmo, com as orelhas peludas, bigode pontudo, toda felpuda. Tão pequenininha, meu deus… Não sei como não virou comida de carcará. Ela andava toda assim, bem devagar. Passinho, passinho. Estava morta de fome a bichinha. Eu não tinha leite. O que dou pra essa gata? Ela foi logo cheirando a comida da Nega, que latiu, não gostou. Ainda mais quando peguei a gatinha no colo, fiz carinho. Dei de tudo: batata amassada (que é comida de bebê), uva passa, sardinha, quitute. Comeu, comeu, comeu. Capotou, dormiu no meu colo. Nunca vi uma gata pra gostar tanto de colo. Quando acordava me olhava assim de lado, um dos olhos bem inchado. Pinguei colírio, ui! Que aflição! Mas era só ir tocando de leve na ponta do bigode que lá ia ela de novo pros braços de Morfeu. Existe um céu só pros gatos. Sabe-se lá com o que eles sonham, nuvens feitas de lã pra eles poderem brincar. Mas na minha cama, nem pensar! Não adiantou nada. Foi só deixar ela sozinha que ela chorou, subiu as escadas, com aquele tamanho todo. Escalou meu mosquiteiro. Miou, miou. Méee. Méee. Isso é uma gata ou uma ovelha? Tá bom. Ganhou. Entra. Deita aí. Mas dos pés, ela vinha me montando, me subindo, me escalando. Pés, barriga e ombro, seu bigode no meu cangote. Pegava ela de volta, botava no pé. Não bastava: lá começava ela de novo a jornada. Dormiu agarrada. Se enroscou nos meus braços. Eu, todo bravo, cedi.
Deixei ela enroladinha em si mesma e fui pro trabalho. Recomendei pro Rafa que tomasse cuidado, não pisasse na gata, nem deixasse fugir do lugar. Não tinha esquecido ainda a história do carcará. Voltei, lá estava o Rafa. Mas cadê a gata? Olha eu bobo, todo ansioso. E o Rafa pesaroso: – Pois é… a janela aberta… partiu.
Como é que encontro uma gata dessas e deixo ela ir embora?
No começo não a queria de jeito nenhum. Já me bastava a Nega pra me dar trabalho. Mas ela foi ficando, com seus bigodes, sua orelha de ouriço. Passei o dia me dizendo que pois é, essas coisas não se escolhem. Como o Rafa, como os amigos, que aparecem na sua vida e você aprende a amar. Às vezes até os mais improváveis, com pelos na orelha e olhos inchados.
Cadê essa gata?
E toma procurar. Eu na corrida contra o carcará.
Peguei a chave e deixei tilintando, que os bichos gostam desses barulhos. Os grilos se puseram logo a cantar. Era tlim tlim tlim pra cá, cri cri cri pra lá. E eu psss psss a chamava pelo nome: [ ]! – foi o nome que lhe dei. A essa altura já devia conhecer minha voz. Mas uma gatinha tão pequena, numa escuridão tão imensa. Tlim tlim, olhava debaixo do carro. Pss psss, dentro do saco. O lixo, todo revirado. Um cachorro bravo latindo. Você comeu minha gata, seu bobão? Deixa ver se você está com bafo de gata, abre a boca e diga ahhhhhhhhh.
Quem me via achava que eu era doido. Sozinho na praça, andando bem devagar, quase não respirando pra poder ouvir qualquer choro. Tlim tlim. Nada. Ia quase parando, olhando pro chão. Era só ouvidos. Quem é esse? Um perguntava. É doido – outro dizia. Só eu e a lua, que alumiava. Eu já miava, e os grilos cri cri se compadeciam. Será que ela se escondeu? Faz bem. Um bichinho tão frágil, pra virar lanchinho da madrugada é fácil, fácil.
Por que será que ela fugiu? Deve ter ficado com medo, sozinha. Com sede. Faminta. Foi só à porta ver se me encontrava, aí passou aqueles flocos de palha, tão irresistivelmente divertidos... Tomara que alguém a tenha pego e levado pra casa. Pelo menos não escutava qualquer gemido. Ali de noite, espreitando o quintal das casas. Assobiando. Cantava com esperança que ela me escutasse. Fazia tempo que não vagava assim. A noite me envolvia. Me sentia um bicho, um vira-lata. Pra onde eu iria se fosse um gato?
Pra onde é que foi essa gata?
Foi quando você me ocorreu, Kyara. Como encontro uma gata assim e a deixo escapar? Como deixei você partir?
Metáforas. Ainda me deixam louco. Agora procurava a gata como se encontrá-la fosse o mesmo que lhe encontrar.
Será que você sentiu fome e saiu por aí procurando o que comer? Tanta coisa boa por aqui, pra que tombar lata, rasgar saco? Gatas são assim mesmo, e não sei? Ainda mais se forem geminianas.
E me dizia, desencana. Não adianta pedir pra alguém gostar de você. No máximo dar bons motivos e deixar a natureza agir. Quem gosta, gosta de cara. Desde antes de te conhecer. Pra que perder tempo tentando convencer? Já era.
E já ia voltando pra casa. Fazia um tlim e um psss mais por desencargo de consciência.
Mas aí ouvia um miau. Será que é ela? Passava batido o portão de casa e ia procurar do outro lado.
E dizia a mim mesmo: que é isso! Deixa de frescura! Que nesse mundo nada nunca foi de graça. Ela só está distraída, ainda não lhe viu. Se abre! Com sinceridade mostra o que lhe vai no peito. Se vira do avesso, seja você mesmo. Que toda natureza humana é linda e apaixonante. Basta ter coragem pra ser e sensibilidade pra notar. Vá, e diga que você não quer prender, quer soltar. Ser testemunha. Cúmplice. Em qual travessura?
Teve que a gata sumir pra que eu voltasse a andar por aí. Fazia tempo que não vagava assim, errante, pixo reto, grafite torto, cola e barbante. Feito bicho. Cheirando. Pego uma flor do chão, deixo sobre a gangorra do parque. Brincar de catapulta com os ratos. Chutar a água que corre na sarjeta, circular os postes de luz.
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