— Os deuses deixam de proteger quem é covarde — ressoou a voz estranha na cabeça de Mandred. — Agora os outros podem pegar você”.
O homem-javali ergueu-se totalmente. Seus beiços tremiam. Ele quase parecia sorrir. Então deu meia-volta. Contornou o círculo de pedras e logo ficou totalmente fora do campo de visão.
Mandred levantou a cabeça. A fantástica luz das fadas ainda dançava no céu. Os outros? Logo foi cercado pela escuridão. Suas pálpebras teriam despencado sem que percebesse? Dormir... só por pouco tempo. A escuridão era tentadora. Era um prenúncio de paz.
Noroelle estava sentada à beira de um pequeno lago, à sombra de duas tílias, e deixava-se encantar pela flauta de Farodin e o canto de Nuramon. Era como se os dois pretendentes de modos afáveis lhe presenteassem com novas sensações. Contemplava o jogo de luz e sombras no teto de folhas muito acima dela. Seu olhar vagueou até a nascente que havia quase na fronteira das sombras, atraído pela luz do sol que cintilava nas pequenas ondas. Inclinou-se para a frente, deixou a mão molhar-se e sentiu um agradável formigamento, provocado pela magia da água.
Seu olhar seguiu o curso da nascente que formava o laguinho. Os raios de sol chegavam até o fundo e faziam brilhar as pedras preciosas coloridas que Noroelle certa vez pusera ali com cuidado. Elas absorviam parte da magia da nascente. O restante afluía, junto com a água, para um riacho. Lá fora, os prados se alimentavam dessa magia. E, à noite, as fadas das campinas deixavam suas flores e se encontravam para passear sob a luz das estrelas e celebrar com seu canto a beleza da Terra dos Albos.
Os campos vestiam seus mantos de primavera em flor. Um vento suave carregava o rico perfume das plantas e flores até Noroelle; sob as árvores, ele se misturava ao doce aroma das tílias. Um zumbido pairava sobre os elfos, que se unia ao canto dos pássaros e ao marulhar da água da nascente como acompanhamento para a música de Farodin e Nuramon. Enquanto Farodin conseguia, com a melodia de sua flauta, tecer um fino tecido de sons com todas as vibrações do lugar, Nuramon elevava sua voz sobre eles e inventava palavras que descreviam Noroelle como uma alba. Ela olhava afetuosamente para Nuramon, sentado sobre uma pedra plana perto da água, e novamente para Farodin, recostado no tronco da maior das duas tílias.
O rosto de Farodin era o de um príncipe elfo das velhas fábulas, cuja nobre beleza era exaltada como o brilho dos albos. Seus olhos, de um verde intenso, eram as joias da sua face e os cabelos, quase brancos de tão louros, lhe serviam de moldura. Vestia o traje dos trovadores, e tudo — a camisa, a calça, o casaco, o lenço no pescoço — era feito da mais distinta seda vermelha das fadas. Apenas seus sapatos eram de macio couro de gelgerok. Noroelle observava seus dedos, que dançavam sobre a flauta. Poderia passar o dia todo admirando-os...
Enquanto Farodin correspondia ao ideal de um elfo, o mesmo não se podia dizer de Nuramon. As elfas da corte zombavam declaradamente de sua aparência, mas depois cochichavam com entusiasmo sobre sua beleza peculiar. Nuramon tinha olhos castanho-claros e cabelos cor de mel, que caíam em ondas um pouco selvagens quase até seus ombros. Com seus trajes cor de areia, ele de fato não correspondia à figura de um trovador, mas ainda era uma visão agradável. Em vez da seda, elegera das fadas o seu tecido de lã — que certamente era menos precioso, mas tão firme e macio que provocava em Noroelle o desejo de deitar a cabeça no seu peito só ao observar sua camisa e o casaco cor de bosque. Até suas botas de cano médio, cor de terra e feitas de couro de gelgerok, despertavam em Noroelle o desejo de tocá-las. A expressão da face de Nuramon variava tanto quanto a sua voz, que dominava todas as formas do canto e dava vida a cada emoção com o som que melhor lhe cabia. Seus olhos castanhos, contudo, expressavam saudades e melancolia.
Farodin e Nuramon eram diferentes, mas cada um impressionava à sua maneira. Ambos tinham sua própria perfeição, assim como a luz do dia e a escuridão da noite eram encantadoras cada uma a seu modo, como o verão e o inverno, a primavera e o outono. Noroelle não queria abrir mão de nada disso, e comparar a aparência de ambos certamente não tornaria mais fácil sua decisão por um deles.
Alguns membros da corte aconselhavam Noroelle a levar em conta para sua escolha a linhagem da família de seu companheiro. Mas qual era o mérito de Farodin no fato de que sua bisavó fora uma alba? E tinha Nuramon alguma culpa por descender de uma família que estava distante dos albos havia muitas gerações? Noroelle queria que sua decisão não fosse condicionada pelos antepassados deles, mas somente por si própria.
Farodin sabia como cortejar uma elfa de estirpe. Conhecia todas as regras e costumes e agia sempre de forma tão apropriada e honrosa que era inevitável admirá-lo. Isso causava em Noroelle a impressão de que ele conhecia o seu âmago, de que era capaz de tocá-lo, encontrando sempre as palavras precisas, como se a todo momento compreendesse seus pensamentos e sentimentos. Mas era aí que também estava o seu defeito. Farodin conhecia todas as canções e todas as histórias antigas. Se sempre sabia qual doce palavra dizer, era porque já ouvira todas elas antes. Então como saber quais eram as suas próprias palavras e quais eram de poetas antigos? Essa melodia era mesmo sua ou ele já a ouvira antes? Noroelle teve vontade de sorrir; tal defeito visível não estava em Farodin, mas nela própria. Este lugar adorável não era exatamente como o descreveram os bardos antigos? O sol, as tílias, as sombras, a nascente, o encanto? Eles não nos presentearam, portanto, com as canções perfeitas para este lindo lugar? Devia então repreender Farodin só por não fazer diferente daquilo que já era tão apropriado? Não, ela não podia fazer isso. Farodin era perfeito em todos os aspectos, e o seu cortejo faria feliz toda e qualquer elfa sobre as campinas.
Mas Noroelle se perguntava quem Farodin realmente era. Ele se esquivava dela, assim como a nascente de Lyn repelia o olhar dos elfos com sua luz ofuscante. Ela desejava que ele brilhasse menos por um momento, para que ela pudesse lançar um olhar sobre sua própria nascente. Frequentemente tentava induzi-lo a isso, mas ele não compreendia os seus gestos. Assim, fora até então impedida de conhecer o seu interior. E às vezes temia que ali dentro pudesse estar à espreita algo de obscuro, algo que Farodin pretendia esconder a qualquer preço. De quando em quando, o seu preferido fazia longas viagens, mas nunca falava sobre elas — aonde ia e por qual motivo. E, quando voltava, surgia diante de Noroelle ainda mais fechado que antes, apesar da alegria do reencontro.
Por outro lado, no que dizia respeito a Nuramon, Noroelle sabia exatamente de quem se tratava. Já ouvira várias vezes que ele não era o elfo certo para ela, que não estava à altura de seu brio. Ele não só descendia de um clã numeroso, mas também de uma linhagem marcada por uma desonra. Nuramon carregava em si a alma de um elfo que, em todas as vidas que já viveu, não encontrou uma realização para sua existência, e que por isso não conhecia o luar. Aqueles que permanecessem alheios a esse caminho renasceriam sempre na mesma linhagem, até que o seu destino se realizasse. Mas nunca seriam capazes de se lembrar da vida anterior.
Ninguém havia reencarnado tantas vezes quanto Nuramon; já estava há milênios submetido ao jogo de vida, morte e renascimento. Junto com a alma, herdou o seu nome. A rainha reconheceu nele a alma de seu avô, e por isso batizou-o assim. A busca por seu destino, que parecia ser infinita, provocou escárnio arrogante até mesmo na sua própria família. Ao menos ninguém precisava se preocupar com aquele recém-nascido; porque, assim que ele morresse, sua alma retornaria imediatamente para lançar sua sombra sobre a linhagem. Mas ninguém sabia quem daria à luz o próximo Nuramon.
Читать дальше