Mais uma vez Mandred olhou para trás. A fera não parecia fazer esforço para se movimentar pela neve. Na verdade, ela poderia alcançá-lo muito mais rápido. Por que estava brincando de gato e rato com ele?
Mandred escorregou e bateu a cabeça com força contra uma rocha, mas não sentiu dor. Passou as luvas sobre a testa. Sentiu seu sangue escuro escorrer. Estava com tontura. Isso não deveria ter acontecido! Acossado, olhava para trás. O homem-javali se detivera e de cabeça erguida olhava para cima, em sua direção.
Mandred não se aguentava mais sobre as pernas. Como fora tolo! Olhar para trás e andar ao mesmo tempo!
Com toda a força, tentou subir. Mas a perna meio congelada o impedia de prosseguir. Ele precisaria de uma grande rocha para conseguir se alçar para cima. Agora tinha de se arrastar. Que humilhação! Ele, Mandred Torgridson, o mais conhecido guerreiro dos fiordes, curvado e rastejando diante de seu inimigo! Só durante a expedição militar do rei Horsa, sete homens foram vencidos em duelos contra Mandred. Para cada adversário vencido fazia, cheio de orgulho, uma nova trança. E agora rastejava diante do inimigo dessa forma.
Entretanto, esse era um outro tipo de luta, advertiu a si mesmo. Não era possível se impor com armas diante desse monstro. Ele viu como a flecha de Asmund ricocheteara ao atingi-lo, e como o seu machado não lhe ferira. Não, essa batalha tinha outras regras. Ele a venceria se conseguisse acender o fogo.
Desesperado, Mandred rastejava sobre os cotovelos. Aos poucos, a força de seus braços também esvanecia. Mas o cume já não estava longe. O guerreiro olhou para as pedras erguidas; era como se vestissem gorros de neve, que as protegesse do verde cintilante do céu. Logo atrás do círculo de pedras estava empilhada a lenha para a fogueira de alerta.
Apertando os olhos, Mandred continuava a rastejar sobre o cascalho liso. Diante dele surgiu um dos pilares do círculo de pedras. Ele se apoiou na pedra e, vacilante, pôs-se de pé. Suas pernas já não conseguiriam levá-lo para muito longe.
O cume era achatado e tão plano quanto o fundo de um prato de madeira. Normalmente ele teria feito a volta em torno do círculo de pedra. Ninguém pisava entre as pedras erguidas! Não era uma questão de coragem. Certa vez, durante o verão, Mandred observou o cume por uma tarde inteira. Nenhum pássaro voou por cima do círculo de pedras.
Uma trilha estreita rente ao rochedo contornava-o, e por isso era possível dar a volta no círculo. Mas com as pernas anestesiadas, ele já não tinha mais segurança para se aventurar por esse caminho. Não lhe restava outra coisa senão passar por entre as pedras.
Como que se preparando para receber um golpe repentino, Mandred encolheu a cabeça entre os ombros ao pisar no centro do círculo. Dez passos e alcançaria o outro lado. Era um trecho tão ridiculamente curto...
Amedrontado, Mandred olhou ao redor de si. Não havia neve ali. Era como se o inverno não quisesse penetrar no interior do círculo. Nas pedras estavam riscados desenhos estranhos, de linhas curvas.
Dali até o fiorde, o penhasco era quase vertical. Lá de baixo, do vilarejo, parecia que alguém havia colocado uma coroa rochosa sobre o seu cume. Os blocos de granito, que formavam um amplo círculo ao redor do planalto rochoso, eram maiores que a altura de três homens. Dizia-se que estavam ali havia muito tempo, desde antes de os seres humanos chegarem às terras do fiorde. Eles também eram enfeitados com inscrições curvilíneas. A trama que formavam era tão fina que nenhum homem seria capaz de imitá-la. E, ao observá-la por muito tempo, a sensação era de se estar bêbado do pesado e condimentado hidromel de inverno.
Certa vez, alguns anos antes, um escaldo — um bardo que declamava sua poesia — viajou a Firnstayn, afirmando que as pedras ali erguidas eram velhos guerreiros élficos que teriam sido amaldiçoados por uma praga de seus ancestrais, os albos. Estavam condenados a permanecer solitários e despertos por toda a eternidade, até que num dia distante o próprio país clamasse por sua ajuda e o feitiço então fosse quebrado. Na ocasião, Mandred fez troça do escaldo. Qualquer criança sabia que os elfos tinham baixa estatura e não eram mais altos que os homens. As pedras eram vigorosas demais para serem elfos.
Ao atravessar o círculo, Mandred foi golpeado por um vento glacial. Agora estava quase conseguindo. Nada iria lhe... A pilha de lenha! Daqui ele já deveria conseguir vê-la! Ela estava sobre uma saliência na pedra, protegida contra o vento logo abaixo da borda do penhasco. Mandred caiu de joelhos e rastejou um pouco mais. Não havia nada ali!
O penhasco descia por quase sessenta metros até as profundezas. Teria havido uma avalanche? A saliência teria se partido? Mandred tinha a sensação de que os deuses estavam lhe pregando uma peça. Empregara todas as suas forças para conseguir chegar até ali, e agora... Desesperado, lançou um olhar sobre as terras do fiorde. Bem abaixo, do outro lado do braço de mar congelado, o seu vilarejo descansava sobre a neve.
Firnstayn. Era formado por quatro longas casas comunais e um punhado de pequenas cabanas, cercado de uma paliçada ridiculamente frágil: a muralha de madeira, feita de troncos de pinheiro, servia para afastar os lobos e era obstáculo para saqueadores. Jamais conseguiria deter o homem-javali.
O jarl tomou coragem, aproximou-se cuidadosamente do precipício e olhou para baixo, para o fiorde. A luz das fadas no céu lançava a mágica de suas sombras verdes sobre a paisagem coberta de neve. Não se podia ver homens nem animais. Dos fumeiros sob o vértice dos telhados subia uma fumaça branca, que era desfiada pelas rufadas de vento e varrida sobre o fiorde. Era certo que Freya estava sentada ao lado do braseiro, atenta ao sinal do clarim que anunciaria o retorno dos caçadores.
Se ao menos o clarim não tivesse sido destruído! Dali de cima, o seu chamado certamente seria ouvido da aldeia. Mas que peça cruel os deuses pregavam nele e nos seus! Será que assistiam a tudo aquilo e riam?
Mandred ouviu um ruído seco. Então virou-se, fraco. Deu de cara com o homem-javali, do outro lado do círculo de pedras. Deu a volta lentamente. Então ele também não ousava pisar entre as rochas? Em seguida, rastejou afastando-se da borda do penhasco. Sua vida tinha acabado, ele sabia. Mas se podia escolher, preferia ser morto pelo frio a virar comida de fera.
O bater dos cascos foi ficando mais rápido. Precisava ainda de um último esforço. Uma súbita arrancada e... Mandred conseguiu. Estava no círculo mágico de pedras! Um cansaço de chumbo pesava sobre suas juntas. O frio congelante cortava sua garganta a cada respiração. Esgotado, recostou-se em uma das pedras. Um vento violento lhe repuxava as roupas duras de gelo. O cinto em sua coxa se afrouxara. O sangue atravessava o retalho de lã.
Em voz baixa, Mandred rezava para seus deuses. Para Firn, senhor do inverno; para Norgrimm, senhor das batalhas; para Naida, a amazona das nuvens que rege os 23 ventos; e para Luth, o mestre tecelão que, com os fios do destino dos homens, tece uma preciosa tapeçaria para as paredes do átrio dourado, aquele no qual os deuses bebem na companhia dos mais valentes entre os guerreiros mortos.
Os olhos de Mandred se fecharam. Ele dormiria o longo sono... Perdera seu lugar no átrio dos heróis. Ele deveria ter morrido com seus companheiros. Era um covarde! Gudleif, Ragnar e Asmund — nenhum deles fugira. A pilha de lenha ter despencado do rochedo seria certamente um castigo dos deuses.
— Você tem razão, Mandred Torgridson. Os deuses deixam de proteger quem é covarde — uma voz soou em sua cabeça. Era a morte?, perguntou-se Mandred. Apenas uma voz?
— Mais que uma voz! Olhe para mim!
O jarl mal era capaz de sustentar suas pálpebras. Um hálito quente soprou-lhe o rosto. Ele olhou dentro de grandes olhos, azuis como o céu de um fim de tarde de verão, quando a lua e sol ali convivem. Eram os olhos do homem-javali! A fera se agachara ao seu lado, logo na extremidade exterior do círculo de pedras. A baba pingava de seu focinho coberto de sangue. Em uma das longas presas ainda pendiam fibrosos pedaços de carne.
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