Tive ainda em Arbor uma estranha experiência. Akéion me conduziu um dia, ao principal observatório do planeta, no hemisfério austral. E aí os astrônomos me mostraram, perdido na constelação de Brénoria, uma pálida mancha de luz: a nossa galáxia. No mais potente instrumento — que não é inspirado no princípio do telescópio — essa mancha resumia-se a uma poeira de estrelas, dispostas em espiral. Entre essas estrelas, perdido na irradiação delas, encontrava-se o nosso humilde Sol. E em volta dessa estrelinha girava a minha Terra natal, tão longe, tão pobremente invisível. A luz que eu via tinha partido há mais de oitocentos mil anos e, admitindo que a ciência dos Sinzus tivesse permitido ver a Terra, tudo o que eu podia esperar perceber seriam, talvez, algumas miseráveis famílias de pitecantropos, na orla de uma floresta.
Agora, que regressei a Terra, sempre que a noite ou o tempo o permitem, Ulna e eu observamos a nebulosa de Andrômeda. Vê-la faz-me tocar com o dedo, se assim se pode dizer, a imensidade das distâncias que percorri. A galáxia dos Hiss é muito longe, está fora do alcance mesmo dos nossos telescópios gigantes. Mas ver esta pequena opala e pensar que a mulher que está ao meu lado lá nasceu e eu aí estive!…
Ao cabo de três meses regressamos. Souilik veio nos procurar, como estava combinado. Decolamos do astro-porto de Bérinsenkor, repleto de enormes astronaves que asseguram a ligação entre Arbor e os outros planetas colonizados pelos Sinzus.
O nosso ksill parecia minúsculo ao lado deles.
Mal tínhamos partido, Souilik me confirmou que eu faria parte do seu estado-maior de «torpedeiros de sóis mortos». Parecia ter me tornado uma personagem importante em Ella. Me interroguei, durante muito tempo, sobre o motivo por que os Hiss não cessavam de me nomear para cargos importantes… e perigosos! Estaria certamente mais adequado numa equipe de biologistas. Os Sinzus não deixavam de participar, como eu, da imunidade perante as irradiações Milsliks e, além disso, eram excelentes físicos. Mas creio que os Ellianos tinham levado a peito a minha integração, e para eles eu era, portanto, um Hiss, um Hiss de sangue vermelho, e não um estrangeiro, como os Sinzus. Além disso, há entre mim e Souilik uma profunda e verdadeira amizade e, insistindo para que eu o acompanhasse, este jovem Hiss, excepcionalmente aventureiro, neste povo de aventureiros científicos, fazia-me a mais bela oferta que estava ao seu alcance: a aventura!
Aconteceu inúmeras vezes amaldiçoar, não, de qualquer forma, esta amizade, mas as suas consequências!
Quando regressamos a Ella nos instalamos numa casa da ilha Bressié. Ulna e «minha irmã Assila» entenderam-se muito bem. Continuamos a trabalhar cerca de um ano na nossa equipe de biologistas, procurando forma de imunizar totalmente os Hiss contra as irradiações dos Milsliks. Finalmente isso nos pareceu teoricamente impossível: as ondas particulares emitidas pelos Milsliks destroem o pigmento respiratório dos Hiss e de todas as humanidades, salvo os Sinzus e nós. E, a não ser que se mude de pigmento respiratório — o que é, evidentemente, impossível —, nada há a fazer. Assza estudou o problema do ponto de vista da física e chegou exatamente ao mesmo resultado. No entanto, conseguimos, através da injeção de certas substâncias químicas, retardar a ação lítica durante algum tempo, desde que não se tratasse de uma radiação muito intensa.
Certa noite, quando saímos do laboratório, Souilik nos levou até ao seu ksill e, sem quaisquer explicações, decolou. Eu começara a me familiarizar com a condução destes engenhos, pelo que, ao cabo de algum tempo, percebi que estávamos a caminho de Marte. Nem Ulna nem eu lá fôramos alguma vez, e, assim, encaramos a viagem com satisfação. De resto, foi feita na velocidade espacial máxima para esta distância, o décimo da velocidade da luz.
Marte é um planeta bravio, que se assemelha um pouco a Arbor, mas ainda mais árido. Sobrevoamos o solo de muito alto e, depois, Souilik desceu o ksill sobre uma enorme construção, a principal fábrica onde eram construídos os ksills para todos os planetas. Que o termo «fábrica» não lhe desperte a idéia de ruído insuportável. Os Hiss têm horror ao ruído, pelo que ali tudo se passava em silêncio, ou quase. Os ksills eram dispostos em cadeia por autômatos, que alguns, poucos, Hiss vigiavam.
Passamos por vastos átrios sem nos determos e Souilik introduziu-nos num enorme hangar, onde estava sendo construído um ksill de proporções titânicas: medindo mais de trezentos metros de diâmetro, com uma espessura de sessenta metros, não tinha a forma lentilhar clássica, mas sim a de um zimbório de cúpula abatida. Ficamos uns instantes a contemplá-Ia. Então Souilik nos disse:
— Eis a nossa futura nave, com que iremos reacender os sóis.
— Mas qual a razão destas dimensões e desta forma? — perguntei eu.
— São necessárias. O maquinismo que servirá para reacender os sóis é enorme e não pode ser lançado. Teremos, portanto, de aterrar sobre a superfície das estrelas mortas. Você sabe tão bem como eu que, nelas, a fôrça da gravidade é terrível, e, assim, ficaríamos esmagados sobre o nosso próprio peso se não dispuséssemos de um poderoso campo anti-gravítico Para gerar este campo será necessário despender uma energia fantástica. Por isso instalar-se-á uma verdadeira central neste ksill. A forma de zimbório permitirá uma resistência melhor ao seu próprio peso Mas, de qualquer forma, duvido muito que possamos ficar mais de um basike sobre um sol morto!
Vários meses passaram ainda. Pouco a pouco, me habituei à idéia de participar nesta expedição extraordinária. Os dias escoavam-se, muito calmos. Pelo menos, pareciam calmos. Mas nos Três Planetas tudo o que o universo tinha de cérebros prodigiosamente dotados trabalhava dia e noite na grande obra. As vezes, no entanto, punha-me a pensar, contemplando as tranquilas paisagens de Ella, que toda esta serenidade encobria uma atividade vertiginosa. E me sentia perdido, levado para longe, como um pobre ser sem destino.
No laboratório trabalhava com afinco. Me considerava como que uma espécie de enviado da Terra, o representante da nossa civilização, tão orgulhosa da sua técnica, ultrapassada — oh, quantas vezes! — em todos estes cantos do universo! Estava me parecendo que se fizesse uma descoberta importante afirmaria, desse modo, o meu direito de viver em Ella, deixando de ser um parente pobre, uma curiosidade, para me tornar um membro da comunidade das Terras humanas. Por isso lia até alta noite as publicações hiss e Ulna traduzia para mim os trabalhos sinzus. Graças sejam rendidas aos mestres terrestres: se os meus conhecimentos eram, muitas vezes, insuficientes, os métodos de trabalho eram bons, o que me permitiu assimilar rapidamente as noções necessárias.
O mais curioso é que, enquanto me atormentava daquele modo e gemia sobre a minha ignorância, os Hiss me consideravam já como um bom elemento e haviam colocado, desde há muito, sob as minhas ordens, alguns jovens biologistas. Apesar de a minha organização ser diferente, possuía, realmente, conhecimentos que eram novos para eles, Quanto aos Sinius, se é certo que desenvolveram extraordinariamente a física biológica — curam quase todas as doenças por irradiações apropriadas, tal como os Hiss —, tinham esquecido, ou negligenciado, a química. E foi precisamente neste aspecto que alcancei o resultado de que lhe falei: proteger durante algum tempo os Hiss contra as irradiações Milsliks.
O início da minha vida com Ulna não foi fácil. Os Sinzus são de uma susceptibilidade extrema e eu nem sempre sou paciente. Tínhamos de vencer o abismo que se abria entre as nossas educações, diferentes. Felizmente, o problema religioso não veio complicar as coisas: os Sinzus são agnósticos, tal como eu. Mas múltiplos pequenos pormenores nos indispunham um com o outro; por exemplo — coisa curiosa, para um povo tão cerimonioso —, os Sinzus comem com as mãos (e você pôde verificar, esta noite, que Ulna ainda não está completamente à vontade no uso do garfo); o hábito que tenho de trabalhar até altas horas parecia-lhe incompreensível, como também a minha repugnância em me levantar cedo. Pouco a pouco, estabeleceu-se entre nós um modus vivendi, e as Arborianas têm uma enorme vantagem sobre as suas irmãs da Terra: nunca nos ameaçam de voltar para casa das mães!
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