Nada tínhamos para fazer senão comer, dormir e esperar.
Fizemos passar inúmeras vezes o filme do fim deste mundo, que acabamos por decorar, e abençoamos freqüentemente o gênio que, para salvar a memória da sua raça, mandara construir este refúgio. Comecei a observar os Milsliks através da cúpula transparente. Rapidamente se aperceberam da nossa presença, mas, compreendendo que as suas radiações não nos atingiam e que a cúpula era muito dura para a poderem quebrar, deixaram rapidamente de nos prestar atenção.
Passei dias inteiros a observá-los, instalado atrás da superfície transparente. Eu me comparava a um estudante de biologia, debruçado sobre o microscópio, a estudar novas formas microbianas ou novos insetos. Evidentemente, estava colocado em condições desfavoráveis, não podendo praticar experiências. Durante todo o mês que durou o nosso cativeiro nos esforçamos por tentar apreender a significação dos movimentos dos Milsliks. Creio poder afirmar que, em todo o universo, somos os seres que melhor os conhecem, excetuados eles próprios. Apesar de tudo, no último dia não tínhamos progredido mais do que no primeiro. Não descobrimos nada que se assemelhasse a um atividade ordenada, no sentido que damos a este termo, nada que se assemelhasse a um instinto, nada mesmo que lembrasse um simples tropismo. No entanto, segundo a minha experiência da ilha Sanssine, sabia que possuíam uma inteligência, se bem que sem nenhuma analogia com a nossa, e uma sensibilidade, bem mais acessível para nós.
É evidente que os Milsliks têm órgãos e sentidos, ainda que não possamos imaginar o que são. Evitavam a cúpula e só ao princípio a atacaram. Tinham consciência da nossa presença e nós reconhecíamos rapidamente os «estrangeiros» pelo fato de emitirem quando passavam próximos de nós. Alguns habitavam a cidade morta e aprendemos a distingui-los por alguns pormenores das curvas da carapaça.
Eis o que pude observar da existência dos Milsliks: moviam-se constantemente, parecendo ignorar o repouso; seguimos um, revezando-nos, Ulna e eu, durante mais de cinquenta horas. Não parou de descrever sinuosidades complicadas no solo, a pouca distância da cúpula. Raramente se viam indivíduos isolados, mas também não se podia dizer que vivessem em grupos, pois estes desagregavam-se facilmente, e determinado Mislik passava de um ajuntamento para outro sem razão aparente. Por vezes aglomeravam-se em enxames que compreendiam até cem indivíduos, os quais acabavam por se fundir numa única massa metálica. O estado de coalescência dura entre alguns segundos e várias horas. Então a massa desloca-se. Ao princípio acreditei assistir ao seu processo de reprodução, mas verifiquei que do agrupamento saía o mesmo número de indivíduos que nele tinha entrado.
As nossas observações eram dificultadas devido ao alcance relativamente curto das lâmpadas que possuíamos — para além do seu foco tudo era obscuridade — e, sobretudo, pela falta de aparelhos registradores. Teria dado tudo para ter à minha disposição um capacete amplificador de pensamento, idêntico ao que usara na cripta. Desse modo talvez pudesse ter obtido alguns esclarecimentos sobre estes monstros. Mas ali estávamos, atrás do vidro, transformados em espectadores impotentes.
Depois de muito refletir, estabeleci uma teoria sobre a origem dos Milsliks, que expus mais tarde a Assza, o qual a considerou plausível. Você sabe, evidentemente, que nas proximidades do zero absoluto se estabelece a supra-condutibilidade e que a resistência dos metais perante a corrente elétrica se torna quase nula. Assim, pode— se conjeturar terem os ancestrais dos Milsliks diferido dos atuais tanto como a primeira célula viva sobre a Terra difere de nós, devendo a sua existência a um fenômeno deste gênero. Um cristal de ferro-níquel, talvez, pôde encontrar-se situado, num mundo morto, num campo electromagnético variando muito rapidamente e de maneira complexa. Teria surgido, assim, uma espécie de vida elétrica. Uma vez isto admitido, o resto da evolução, até aos Milsliks, não se torna muito mais incompreensível que a nossa própria evolução terrestre. O tal cristal podia ter induzido, por sua vez, essa forma particular de vida noutros cristais, tendo— se produzido variações e diversificações. Se a irradiação mortal dos Mislik não é eletromagnética, não resta dúvida de que estão igualmente rodeados de um potente campo dessa natureza.
Tendo acabado a nossa provisão de água no terceiro dia, fomos obrigados a fazer uma surtida. Escolhemos a ocasião em que apenas dois Milsliks estavam a vista. Saí em primeiro lugar e fulminei-os, Ulna encheu os sacos a transbordar de uma mistura de ar e de água sólida. Após grandes esforços, consegui abrir um dos cofres de metal das salas inferiores: continham pilhas de placas de metal, gravadas com signos que lembravam a escrita kmère. Transformamos o cofre em cisterna; na segunda surtida tivemos a felicidade de encontrar blocos de gelo de água pura e quase que pudemos encher o nosso reservatório. Foi uma sorte, porque logo em seguida os Milsliks estiveram sempre nas proximidades da cúpula em grande número.
Quando penso na acumulação fantástica de circunstâncias. felizes que nos permitiram sobreviver, pergunto a mim mesmo se não nos beneficiamos de uma proteção estranha especial. Mas, por outro lado, é evidente que, como os que não têm sorte não regressam para contar o que passaram — e são, incontestavelmente, os mais numerosos —, os que voltam são justamente aqueles que viram, por acaso ou doutra forma, as circunstâncias. favorecê-los, Contudo, na medida em que os dias decorriam, começava a duvidar da nossa sobrevivência. Por sua parte, Ulna perdera as esperanças há muito tempo. Ela, tão corajosa no combate, deixava-se dominar por uma tristeza fúnebre, devida em grande parte ao possível desaparecimento do irmão. Eu ficava desesperado ao vê-la cada vez mais pálida, de dia para dia; cada vez mais apática, mais fraca, também, porque quase não comia. Ficava longas horas junto a mim, segurando a minha mão. E se bem que conhecesse os sentimentos dela em relação a mim e ela os que eu lhe dedicava, não podíamos encontrar nisso nenhum conforto, porque a rígida educação sinzu proíbe, formalmente, qualquer palavra de amor quando o luto pesa sobre a família. Falar de amor a uma rapariga sinzu que acaba de perder um ente próximo é pior que uma grosseria: é uma obscenidade.
Um dia — se se pode falar em dia num planeta do Império das Trevas — estávamos sentados na cúpula. Alguns Milsliks cruzaram a luz da minha lâmpada. No céu luziam, debilmente, as manchas oblongas das galáxias distantes. Então, subitamente, uma luz deslumbrante jorrou algures no Espaço, passou sobre a cidade, recortando, em sombras chinesas, a silhueta das torres e dos altos edifícios.
Passou sobre a cúpula, forçando-nos a fechar os olhos com um grito de dor.
— Ulna, os Hiss! Os Hiss!
Febrilmente, ajudei-a a colocar o capacete e ajustei o meu.
Custasse o que custasse, era necessário assinalar a nossa presença. Introduzi na pistola uma vintena de «balas quentes», entreabri a porta e disparei. As «balas quentes», ao contrário das «balas mornas», que se limitavam a elevar a temperatura de algumas dezenas de graus acima do zero centígrado, produziam um calor de várias centenas de graus e uma luz viva. Varri um grupo de Milsliks a uma boa distância. — Quando esvaziei a minha pistola Ulna passou-me a dela. O projetor apontou sobre a planície, passou mais uma ou duas vezes sobre nós e, depois, fixou— se. Lentamente, segundo me parecia, mas, na realidade, tão depressa quanto a permitia a prudência, o engenho salvador descia. A luz do projetor refletia-se sobre o solo gelado, criando uma zona de penumbra, na qual vi, finalmente, a alguns metros de altura, uma enorme sombra fusiforme. Não era um ksill, mas sim uma astronave sinzu, o Tsalan!
Читать дальше