— E na matemática?
— Não, logo, não. Ao princípio estudei línguas e continuei a estudá-las até ao fim, embora soubesse que podia ser tempo perdido, pois quando voltasse algumas ter-se-iam tomado dialectos arcaicos. Mas Gimma — e Thurber, especialmente — instigaram-me a aprender Física. Disseram que podia ser útil. Assim fiz, juntamente com Arder e Olaf Staave, mas nós três não éramos cientistas…
— Tinha um diploma.
— Sim, um mestrado em teoria da informação e cosmodromia e um diploma em engenharia nuclear, mas tudo isso era profissional e não teórico. Não ignora como os engenheiros sabem matemática… Portanto, depois dediquei-me à física. Mas queria mais qualquer coisa, só para mim, e por isso, finalmente, voltei-me para a matemática pura. Não tinha inclinação nenhuma para matemática. Nenhuma. Só tinha persistência.
— Sim — murmurou serenamente —, era necessário tê-la para voar…
— Particularmente para se tomar membro da expedição — corrigi-o. — E sabe porque teve a matemática esse efeito? Só o compreendi lá. Porque a matemática se eleva acima de tudo. As obras de Abel e Kronecker valem tanto hoje como há quatrocentos anos, e será sempre assim. Surgem novas estradas, mas as velhas é que indicam o caminho. As ervas daninhas não as invadem. Lá… lá temos etemidade. Só a matemática não a receia. Lá em cima compreendi como é definitiva. E forte. Não havia nada como ela. E o facto de eu ter de me esforçar, de luíar, também era bom. Esfalfava-me a estudá-la e quando não conseguia dormir revia mentalmente o material que estudara nesse dia.
— Interessante — comentou, mas não havia interesse nenhum na sua voz; eu nem sequer sabia se me estava a ouvir.
Ao longe, no parque, subiam colunas de fogo, clarões vermelhos e verdes acompanhados por gritos de contentamento. Ali, onde nos sentávamos debaixo das árvores, estava escuro. Calei-me. Mas o silêncio era insuportável.
— Para mim, teve o valor da autopreservação — disse. — A teoria da pluralidade… o que Mirea e Averin fizeram com o legado de Cantor… Operações utilizando quantidades infinitas e transfinitas, os continua de aumentos discretos… era maravilhoso. Lembro-me como se fosse ontem do tempo que passei com essas coisas.
— Não é tão inútil como pensa — murmurou. Afinal estava a ouvir. — Suponho que não ouviu falar dos estudos de Igalli?
— Não. De que se trata?
— Da teoria do antipólo descontínuo.
— Não sei nada a respeito de nenhum antipólo. Que é?
— Retroniilação. Foi donde surgiu a parastática.
— Nunca ouvi sequer falar desses termos.
— É natural, pois tiveram a sua origem há sessenta anos. Mas isso foi apenas o princípio da gravitologia.
— Estou a ver que tenho que estudar um bocado… Gravitologia. É a teoria da gravitação?
— Muito mais. Só pode ser explicada por intermédio da matemática. Estudou Appiano e Froom?
— Estudei.
— Nesse caso, não deve ter dificuldade. São expansões metagénicas numa série n-dimensional, configuracional e degenerativa.
— Oue está a dizer? Skriabin não provou que não há metragens além dos variacionais?
— Provou. Uma prova muito elegante. Mas isto, compreende, é transcontínuo.
— Impossível! Isso… mas isso deve ter aberto todo um novo mundo!
— Pois abriu — respondeu secamente.
— Lembro-me de um ensaio de Mianikowski… — comecei.
— Oh, não está relacionado! No máximo, uma direcção similar.
— Precisaria de muito tempo para alcançar tudo quanto foi feito em todos estes anos?
Não respondeu logo.
— Oue utilidade poderá ter para si?
Não soube que responder.
— Não tenciona voltar a voar?
— Não. Sou muito velho. Não suportaria a espécie de aceleração que… e, de qualquer modo, agora não voaria.
Depois destas palavras ficámos muito tempo silenciosos. A elação inesperada com que eu falara a respeito de matemática evaporara-se de súbito, e continuei ao lado dele a sentir o peso do meu próprio corpo e o seu tamanho desnecessário. Tirando a matemática não tínhamos nada a dizer um ao outro e sabíamo-lo ambos. Ocorreu-me então que a emoção com que eu falara do abençoado papel da matemática na viagem tinha sido um subterfiigio. Enganara-me a mim próprio com a modéstia, o heroísmo sério do piloto que se ocupa, nos intervalos das nebulosas, com estudos teóricos de infinito. Hipocrisia. O que tinha sido na realidade? Se um náufrago, à deriva durante meses no mar, contou mil vezes o número de fibras de madeira que constituem a sua jangada, a fim de manter a sanidade mental, deverá depois gabar-se disso, quando alcançá terra? Deverá gabar-se de ter tido a tenacidade de sobreviver? E depois? Quem se interessa? Por que havia de interessar a alguém como eu enchera o meu pobre cérebro durante aqueles dez anos, e por que era isso mais importante do que a maneira como enchera o estômago? «Tenho de deixar de representar o papel de herói sereno», pensei. «Poderei permitir-me fazê-lo quando tiver o aspecto dele. Agora devo concentrar-me no futuro.»
— Ajude-me a levantar — pediu, num murmúrio.
Conduzi-o a um gleeder que estava parado na rua. Fomos muito devagar. Onde havia luzes, entre as sebes, as pessoas seguiam-nos com o olhar. Antes de entrar no gleeder, voltou-se para se despedir de mim. Nem ele nem eu encontrámos nada que dizer. Roemer fez um movimento ininteligível com a mão, da qual irrompia uma das canas como uma espada, abanou a cabeça e entrou. O veículo escuro afastou-se silenciosamente. Fiquei de braços pendentes, até o gleeder desaparecer no meio de outros. Meti as mãos nas algibeiras e comecei a andar, incapaz de responder à pergunta quanto a qual de nós escolhera melhor.
Era uma boa coisa que não restasse nada da cidade que eu deixara, nem uma pedra sobre outra. Era como se, então, tivesse vivido numa Terra diferente, entre homens diferentes. Isso começara e terminara de uma vez para sempre e isto era novo. Nem relíquias nem ruínas para lançarem dúvidas sobre a minha idade biológica. Pudera esquecer a sua contagem terrestre, tão contrária à natureza, até aquela incrível coincidência me fazer encontrar uma pessoa que vira pela última vez quando ela era uma criança pequena. Durante todo o tempo que estivera sentado a seu lado, a olhar para as suas mãos secas como as de uma múmia e para o seu rosto, sentira-me culpado e soubera que ele tivera consciência disso. Pensei e tornei a pensar que se tratara de um acidente improvável, até compreender que ele podia ter sido atraído para aquele lugar pela mesma coisa que me atraíra a mim: afinal, crescia ali aquele castanheiro que era mais velho do que qualquer de nós. Ainda não fazia ideia do que eles tinham conseguido no capítulo de aumentar a duração da vida humana, mas percebera que a idade de Roemer era algo de excepcional: devia ser o último ou um dos últimos da sua geração. «Se eu não tivesse saído da Terra, já não estaria vivo», pensei — e pela primeira vez vi que a nossa expedição tinha um reverso inesperado: o subterfúgio, a partida cruel que pregara a outros. Continuei a andar às cegas. À minha volta havia o barulho de uma multidão, uma corrente de transeuntes foi-me empurrando. Até que parei, subitamente desperto.
Havia um barulho indescritível. No meio da mistura de gritos e música, rajadas de fogo de vista explodiam no céu e ficavam a pairar, muito alto, em ramos coloridos; esferas incandescentes caíam nas copas das árvores próximas; com intervalos regulares ouvia-se o som penetrante de muitas vozes, como que um grito de terror misturado com riso, exactamente como se algures, ali perto, houvesse uma montanha russa. Mas olhei em vão em busca da sua armação. No meio do parque erguia-se um grande edifício com torres e ameias, como um castelo fortificado vindo directamente da Idade Média. As chamas frias das luzes de néon que lhe lambiam o telhado ordenavam-se com intervalos de poucos segundos nas palavras pal ácio de merlin. A multidão que para ali me arrastara desviou-se para o lado, na direcção da parede escarlate de um pavilhão que tinha a particularidade de se parecer com um rosto humano, com olhos incandescentes a servirem de janelas e uma boca imensa e disforme cheia de dentes, aberta para engolir a dose seguinte de gente que se empurrava, ao compasso da alegria geral. Todas as vezes a boca consumia a mesma quantidade: seis. Ao princípio, a minha intenção era sair da turba e ir-me embora. Mas isso não teria sido fácil e. além do mais, não tinha aonde ir e ocorreu-me a ideia de que, de todas as maneiras possíveis de passar o resto da noite, aquela, desconhecida, podia não ser a pior. Eu parecia o único que estava sozinho — eram principalmente pares, rapazes e raparigas, homens e mulheres enfileirados a dois e dois — e quando chegou a minha vez, anunciada pelo clarão branco dos grandes dentes e pela escuridão iante e escarlate da misteriosa garganta, dei comigo em apuros, pois não sabia se me podia juntar a um sexteto já completo. No último momento, decidiu por mim uma mulher que estava com um jovem de cabelo escuro e vestido mais extravagantemente do que todos os outros: agarrou-me na mão e, sem cerimónia, puxou-me atrás de si.
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