Os negros lutavam com o frenesi do desespero e o timoneiro levantava os braços; vi-lhe os lábios escancarados num grito, mas não ouvi nenhuma voz. Ele pareceu dançar na proa, a canoa virou-se de lado, uma onda deteve-nos, durante um segundo ficámos imobilizados, como se o trabalho dos remos não servisse para nada, depois o barco deu uma volta e andou para trás cada vez mais depressa.
Num instante, as duas filas de negros largaram os remos e desapareceram: sem hesitar, lançaram-se pela borda fora de cada lado da embarcação. O último a efectuar o perigoso salto foi o timoneiro.
A mulher gritou segunda vez. O seu companheiro aguentava firme com os pés contra o lado oposto do barco e ela agarrava-se a ele. Observei, extasiado, o espectáculo da água revolta e dos arco-íris. O barco embateu em qualquer coisa, ouviu-se um grito, um grito penetrante… Através do caminho da impetuosa corrente descendente que nos arrastava encontrava-se, imediatamente acima da superfície, uma árvore, um gigante da floresta, que caíra e formara uma espécie de ponte. Os outros dois deixaram-se cair no fundo da embarcação. Na fracção de segundo que me restava, perguntei-me se deveria fazer o mesmo. Sabia que tudo aquilo — os negros, a velocidade dos rápidos e a queda de água africana — era apenas uma espantosa ilusão, mas não era capaz de continuar sentado enquanto a proa da canoa se infiltrava sob o tronco resinoso e a pingar da enorme árvore. Era superior às minhas forças. Atirei-me ao chão, mas ao mesmo tempo levantei a mão, que passou através do tronco da árvore sem lhe tocar. Não senti nada, como esperara, mas apesar disso a ilusão de que escapáramos miraculosamente a uma catástrofe manteve-se intacta.
Mas ainda não acabara, A onda seguinte empinou o barco, depois uma enorme vaga apanhou-nos e virou-nos, e nos segundos seguintes a embarcação descreveu um círculo diabólico, arrastada para o centro do redemoinho. Se a mulher gritou, não a ouvi; não teria ouvido nada naquele momento. Senti com o corpo todo o choque, o rachar da canoa, e os meus ouvidos foram como que tapados pelo rugir da queda-dágua. A canoa foi atirada para cima com enorme força e ficou entalada entre dois rochedos. Os outros dois saltaram para uma rocha coberta de espuma e amarinharara por ela acima comigo atrás.
Encontrámo-nos num penhasco entre dois braços de brancura trémula. A margem direita estava muito distante; para a esquerda seguia uma ponte presa em fendas da rocha, uma espécie de passagem elevada acima das ondas que mergulhavam nos abismos daquele diabólico caldeirão. O ar estava frio da névoa e da espuma; a ponte estreita pairava, sem corrimãos e escorregadia da humidade, acima da parede de som. Era necessário colocar os pés nas tábuas meio podres, mal unidas umas às outras por meio de cordas, e caminhar alguns passos para chegar à margem. Os outros estavam de joelhos à minha frente e aparentemente discutiam quem deveria ir primeiro. Eu não ouvia nada, claro. Era como se o próprio ar tivesse endurecido em consequência do troar constante. Por fim, o jovem levantou-se e disse-me qualquer coisa, a apontar para baixo. Vi a canoa. A sua proa partida dançou numa onda e desapareceu, a rodopiar cada vez mais depressa, atraída pelo redemoinho. O jovem de pele de tigre estava menos indiferente ou sonolento do que no princípio da viagem, mas parecia aborrecido, como se estivesse ali contra sua vontade. Agarrou no braço da mulher e eu pensei que tivesse endoidecido, pois não havia dúvida de que a puxava a direito para a garganta rugidora. Ela disse-lhe qualquer coisa e vi-lhe um clarão de indignação nos olhos. Pus as mãos nos ombros deles, disse-lhes por sinais que me deixassem passar e pus os pés na ponte, que balouçava e dançava. Caminhei não muito depressa, movendo os ombros para me equilibrar. No meio balancei uma ou duas vezes e, de súbito, a ponte começou a oscilar, de tal modo que quase caí. Sem esperar que eu chegasse ao outro lado, a mulher meteu também pela pene. Com medo de cair, saltei para a frente, pousei mesmo à beirinha do rochedo e virei-me imediatamente.
A mulher não atravessara: voltara para trás. O homem novo começou a atravessar primeiro, a segurá-la pela mão. As estranhas formas criadas pela queda-dágua, fantasmas pretos e brancos, constituíam um pano de fundo da sua instável passagem. Ele estava perto; estendi-lhe a mão. Ao mesmo tempo, a mulher tropeçou, a ponte começou a oscilar e eu puxei como se preferisse arrancar-lhe o braço a deixá-lo cair. O ímpeto transportou-o numa distância de dois metros e ele aterrou de joelhos atrás de mim. Mas largou a mulher.
Ela ainda estava no ar quando eu saltei, com os pés para a frente, a fim de entrar na água em ângulo, entre a margem e a face vertical do rochedo mais próximo. Pensei em tudo isso mais tarde, quando tive tempo. Essencialmente, sabia que a queda-dágua e a travessia da ponte eram uma ilusão, como o provava o tronco da árvore através do qual a minha mão passara. Apesar disso, saltei como se ela corresse verdadeiro perigo de vida, e até me lembro de que, por instinto, me preparei para o impacte gelado com a água, cujos salpicos nos tinham molhado constantemente o rosto e as roupas.
No entanto, não senti nada além de um forte jacto de ar e aterrei numa sala espaçosa, de pernas ligeiramente dobradas, como se tivesse saltado, no máximo, da altura de um metro. Ouvi um coro de gargalhadas.
Fiquei parado num chão macio, que parecia de plástico, rodeado por outras pessoas, algumas ainda com a roupa molhada. Olhavam para cima e riam à gargalhada.
Segui a direcção do seu olhar. Era extraordinário.
Não havia vestígios de quedas-dágua, de penhascos, nem do céu africano. Vi um tecto iluminado e, debaixo dele, uma canoa que acabava de chegar. Na realidade, tratava-se de uma espécie de decoração, pois só parecia uma embarcação vista de cima e dos lados. A base era uma espécie de construção metálica qualquer. Estavam quatro pessoas deitadas dentro dela, mas nada as cercava — nem remadores negros, nem rochedos, nem rio: apenas finos jactos de água que esguichavam de vez em quando de agulhetas ocultas… A certa distância erguia-se o obelisco de rocha onde a nossa viagem terminara. Erguia-se como um balão preso, pois não tinha nada a suportá-lo. Dele, a ponte conduzia a uma saída de pedra que irrompia da parede de metal. Um pouco mais alto, pequenos degraus com um corrimão e uma porta. E era tudo. A canoa com as pessoas lá dentro levantou-se e caiu sem o mínimo som. A única coisa que eu ouvia eram as explosões de riso que acompanhavam cada fase sucessiva da aventura da queda-dágua que não existia. Passado um bocado, a canoa colidiu com a rocha e as pessoas saltaram; tinham de atravessar a ponte…
Tinham decorrido talvez 20 segundos depois do meu salto. Olhei à procura da mulher. Estava a observar-me. Senti-me ainda mais confuso. Não sabia se devia ir ter com ela. Mas a multidão começou a sair e no momento seguinte encontrámo-nos ao lado um do outro.
— É sempre a mesma coisa — comentou ela, então. — Caio sempre!
A noite no parque, o fogo de vista e a música não me pareceram, não sei explicar porquê, inteiramente reais. Saímos com a multidão, que estava agitada após os terrores que acabara de experimentar. Vi o companheiro da mulher a abrir caminho na direcção dela. Mostrava-se de novo letárgico. Nem sequer pareceu reparar em mim.
— Vamos ao Palácio de Merlin — disse a mulher, tão alto que ouvi.
Não tencionara escutar, mas uma nova onda de gente excitada aproximou-nos ainda mais. Por essa razão, continuei parado perto deles.
— Estás com um ar de quem tenta escapar — disse ela, a sorrir. — De que estás com medo, de bruxaria?…
Falava com ele, mas olhava para mim. Podia ter aberto caminho para me afastar, claro, mas, como sempre em tais situações, tive muito medo de parecer ridículo. Continuaram a andar e deixaram um vazio na multidão. Outros, perto de mim, decidiram de súbito visitar o Palácio de Merlin, e quando segui nessa direcção, com algumas pessoas a separar-nos, compreendi que um momento antes me não enganara.
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