– Você é americano, não? – perguntei.
– Americaníssimo. – Seu sotaque não era típico de nenhum Estado americano.
– Está há muito tempo na Itália?
– Há cinco anos – disse ele. – Percorrendo o país.
– Quer dizer que todos os quadros da exposição têm mais de cinco anos?
Ele riu.
– Não. São todos novos. Feitos de memória. Ou inventados, como você preferir. Pinto levado pela solidão e pela saudade. Dá aos quadros uma certa aura, não acha?
– Acho.
– Quando voltar aos Estados Unidos, vou pintar a Itália. Como a maioria dos pintores, tenho uma teoria. A minha é que é preciso sair da nossa terra para se saber como ela é. Acha-me louco?
– Não, se os seus quadros se baseiam nessa teoria.
– Gosta deles?
– Muito.
– Não o culpo. – Riu. – A óptica que Ângelo Quinn tem da sua terra natal. Não os venda. Um dia eles ainda vão ter valor.
– Não pretendo vendê-los – repliquei. – E não é pelo que possam vir a valer.
– Gostei de ouvir isso – disse ele, bebendo seu café. – Mesmo que fosse só pelo café, já não consideraria minha estada na Itália desperdiçada.
– De onde você tirou o nome de Ângelo?
– De minha mãe. Noiva de guerra italiana. Meu pai levou-a para os Estados Unidos. Ele era um jornalista insatisfeito, irrealizado. Cansava-se de um emprego e mudava-se para outra cidadezinha abandonada, até que acabou se fartando. Pinto as andanças dele. Você é mesmo um colecionador, como Bonelli disse?
– Não – respondi. – Para lhe dizer a verdade, é a primeira vez na minha vida que compro um quadro.
– Pomba! – exclamou Quinn. – Pois continue comprando. Você tem bom olho, embora eu não devesse dizer isso. Tome outro cafezinho. Você me fez ganhar o dia.
No dia seguinte, levei o cheque a Bonelli e passei uma boa meia hora olhando para os quadros que comprara. Bonelli prometeu guardá-los, se eu não pudesse voltar no dia em que a exposição encerrasse. A caminho de Porto Ercole, na sexta-feira à tarde, não pude deixar de pensar que a minha primeira visita a Roma fora um sucesso.
Havia poucos hóspedes no Pellicano e me deram um quarto grande e arejado, de frente para o mar. Pedi à telefonista que ligasse para a casa de Quadrocelli. Ele não estava e só deveria voltar no dia seguinte de manhã, informou ela. Pedi-lhe que deixasse recado de que eu estaria o dia inteiro no hotel.
Comprara petrechos de tênis em Roma, minha bolha sarara e, na manhã seguinte, joguei em duplas mistas com uns velhos ingleses que também estavam hospedados no hotel. Após ter tomado uma chuveirada, estava sentado no terraço, olhando para o Mediterrâneo, quando a moça da recepção surgiu com um homem baixo e moreno, metido numa velha calça de veludo cotelé e num suéter azul, de marinheiro.
– Sr. Grimes – disse a moça -, este é o Sr. Quadrocelli.
Levantei-me e apertei a mão de Quadrocelli, que era áspera e calosa como a mão de um lavrador. Todo ele parecia um camponês, a pele curtida do sol, o corpo forte e redondo. O cabelo e os olhos eram pretos, os movimentos rápidos e vivos. Tinha rugas fundas em volta dos olhos, como se toda a vida tivesse rido muito. Calculei que devia ter uns quarenta e cinco anos.
– Bem-vindo, amigo – disse ele. – Sente-se, sente-se. Que bela manhã, não? Que lhe parece a nossa vista? – perguntou, como se a vista, a costa rochosa da península de Argentario, o mar banhado de sol e a ilha de Genuttri, que sobressaía a distância, fossem sua propriedade particular. – Posso oferecer-lhe um drinque? – perguntou, tão logo nos sentamos.
– Ainda não, obrigado – respondi. – Ainda é um pouco cedo para mim.
– Ah, excelente! – exclamou ele. – Já vejo que o senhor vai me dar um bom exemplo. – Falava num inglês quase sem sotaque e rápido, como se mil pensamentos se sucedessem na sua cabeça, forçando-o a falar em alta velocidade. – E como vai o encantador Miles Fabian? Que pena que ele não pôde vir também! Minha mulher está desolada. Apaixonou-se perdidamente por ele e minhas três filhas também. – Riu alegremente. Tinha uma boca pequena, de lábios curvos, quase femininos, mas sua risada era forte e masculina. – Ah, como a vida dele deve estar cheia de amores! E, ainda por cima, solteiro. Sábio, sábio. É um autêntico filósofo, o nosso amigo Miles, não acha, Sr. Grimes?
– Ainda não o conheço bem – respondi. – Nossa amizade é recente.
– O tempo só lhe faz justiça, principalmente se o compararmos conosco, pobres mortais. – Quadrocelli riu de novo. – O senhor está aqui sozinho?
– Infelizmente, estou.
Ele fez uma pequena careta.
– Tenho pena do senhor. Num lugar como este… – Fez um gesto com a mão, indicando a magnificência da paisagem. – O senhor não é casado?
– Não.
– Vou apresentá-lo às minhas três filhas. Uma é linda, embora não fique bem a um pai dizê-lo, as outras têm muita personalidade. Cada qual com as suas virtudes. Mas não tenho favoritismo. Quando Miles me telefonou de Gstaad, falou-me muito bem do senhor. Disse que, além de ser ótima companhia, o senhor possuía inteligência e retidão, qualidades que nem sempre andam juntas, nos dias que correm. Mas eu diria o mesmo de Miles.
Não achei conveniente desiludir o meu novo e generoso amigo.
– Como foi que o senhor conheceu Miles? – perguntou ele.
– Viajamos no mesmo avião, vindo de Nova York. – Era verdade, embora eu não o tivesse visto durante o vôo e ele também nunca me houvesse dito que me tinha visto. Mas evitaria mais perguntas.
– E vocês bateram certo assim, de estalo? – perguntou Quadrocelli, estalando os dedos.
"Bater" e "de estalo" eram termos apropriados, pensei, lembrando que tinha batido com o abajur na cabeça de Fabian.
– É, de estalo – concordei.
– Como os casamentos – disse Quadrocelli -, as sociedades também são concertadas no céu. Tem alguma experiência de vinhos, Sr. Grimes?
– Nenhuma. Até vir à Europa, só bebia cerveja.
– Não tem importância. Miles tem paladar por nós três. Digo-lhe, foi um dia de grande honra para o meu vinho, aquele em que Miles disse que estaria interessado em exportá-lo para todo o mundo, com o meu nome na garrafa. Cada vez que um americano disser: "Gostaria de um Chianti Quadrocelli", vou sentir um arrepiozinho de orgulho. Não sou vaidoso, mas há certas coisas que envaidecem. E vai ser um vinho honesto, isso eu lhe prometo. Não vai ter mistura de zurrapa grega ou de ácido siciliano. Ah, as coisas que se fazem aqui na Itália! Sangue de boi, produtos químicos. Sinto vergonha do meu país. O nosso vinho se parece tanto com a nossa política! Desacreditados, desvalorizados como as nossas liras. Mas isso não acontece só na Itália. Se soubesse o que vai pela França! Eu, o senhor e o nosso amigo Miles vamos poder olhar para qualquer pessoa e dizer: "Quando comprou o nosso vinho, o senhor não foi enganado". E, ao mesmo tempo, ficaremos ricos. Muito ricos, meu amigo! A sede é insaciável. Vou lhe mostrar os números depois do almoço… o senhor vai dar-me o prazer de almoçar comigo e com minha esposa…
– O prazer será meu – retruquei.
– É uma das poucas coisas que o imbecil do nosso governo não pôde estragar – continuou Quadrocelli. – O meu vinho. Tenho uma gráfica em Milão. O senhor não faz idéia de como é difícil sobreviver. Impostos, greves, restrições… Atentados a bomba. – Ficou subitamente sério. – Dolce Itália. Tenho que ter um guarda armado na minha gráfica, durante as vinte e quatro horas do dia. Imprimo, ao preço de custo, uns panfletos inofensivos para uns amigos socialistas e estou sempre sendo ameaçado. Não acredite, Sr. Grimes, quando lhe disserem que Mussolini morreu. Meu pai teve de fugir para a Inglaterra em 1928… houve uma vantagem, é claro, aprendi a sua bela língua… e não me surpreenderei se, um dia destes, eu também tiver que fugir. Da direita, da esquerda, de cima, de baixo. – Fez um gesto de impaciência, como se estivesse aborrecido consigo mesmo por demonstrar pessimismo. – Ah, não leve tudo o que eu disser demasiado a sério. Vou de um extremo ao outro. Minha família veio do sul e todos nós chorávamos e ríamos quase ao mesmo tempo. – Riu alegremente, recordando a versatilidade emocional da família. – O senhor está aqui para falar sobre vinho e não sobre a nossa maldita política. A eterna uva. Nem sequer os políticos e os ditadores podem impedir as uvas de crescerem. E os fermentos nunca entram em greve. O senhor e Miles escolheram o único investimento que pode ser considerado um risco razoável na Itália. Quando Miles falou comigo ao telefone, mencionou uma morte.
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