– Encontrei uns tênis velhos – foi logo dizendo. – Que número você calça?
– 43 – respondi.
– Ótimo. Como eu.
O carro dele, um pequeno e elegante Alfa Romeo azul, conversível, de dois lugares, estava estacionado bem em frente ao hotel, atrapalhando o trânsito. Um policial olhava para o carro com ar de sofrimento. O guarda ralhou com Lorimer numa voz musical, mas o americano acenou para ele com um sorriso e enfiamo-nos no trânsito. Ele guiava à romana e quase batemos umas dez vezes antes de chegarmos ao clube de tênis, situado às margens do Tibre. Guiar, principalmente àquela velocidade, parecia exigir toda a sua atenção, de modo que pouco falamos. Em dado momento, ele disse:
– Estes são os jardins da Villa Borghese. – E entramos num parque verdejante. – Você precisa dar uma olhada no museu.
– Vou dar – prometi. Estava começando a gostar de museus. Fabian ficaria satisfeito quando eu lhe dissesse que tinha visitado o Museu Borghese. Fazia parte da sua lista. "Preste atenção nos Ticiano", dissera ele.
Quando atravessamos os portões do clube, Lorimer estacionou o carro à sombra de uns plátanos. Havia outros carros estacionados, mas não se via ninguém. Quando eu ia abrir a porta do meu lado, Lorimer estendeu a mão e segurou-me o braço.
– Está com você?
– Está. – Meti a mão no bolso interno do paletó e tirei o envelope, que entreguei a Lorimer. Sem sequer o examinar, ele enfiou-o no bolso interno do seu paletó.
– Evelyn escreveu dizendo que você me ligaria – disse Lorimer. – Obrigado por não ter telefonado para a embaixada.
Saímos do carro, Lorimer carregando uma velha sacola de tênis. Quando nos dirigíamos para a sede do clube, ele disse:
– Ainda bem que você veio. É difícil arranjar parceiros a esta hora. Gosto de jogar antes do almoço, e os italianos só jogam depois do almoço. Diferenças fundamentais entre duas civilizações. Irreconciliáveis. Como se estivéssemos em lados opostos de um abismo. – Cumprimentou dois homens baixos e morenos que jogavam num dos courts. – Daqui a um minuto! – gritou.
Os dois homens estavam apenas treinando, mas pareciam ótimos jogadores.
– Acho que vou prejudicar seu jogo – disse eu. – Há anos que não sei o que é tênis.
– Não se preocupe – retrucou ele. – Eles não agüentam a mão por muito tempo. – Riu, um riso simpático e amigo.
Os tênis cabiam-me perfeitamente, e o short e a camisa estavam mais ou menos, um pouco grandes, talvez.
– Carregue tudo o que você tiver de valor para a quadra – aconselhou Lorimer. – Podia deixar no balcão, mas tem havido queixas. E não deixe o seu passaporte à mostra por aí, ou um dia terá a desagradável surpresa de ler no jornal que um siciliano chamado Douglas Grimes foi preso contrabandeando heroína. – Reparei que ele não só carregava a carteira, os níqueis e o relógio, como também o envelope de Evelyn.
Duvido que os dois homens com quem jogamos tivessem entendido o meu nome. Lorimer apresentou-nos, mas falou em italiano e eu não consegui entender os nomes deles.
Gostei mais de jogar do que pensara. Esquiar mantivera-me em boa forma física e os reflexos não me haviam abandonado. Além do mais, conforme o Dr. Ryan garantira, minha visão em nada prejudicava a prática de esportes. Lorimer parecia um furacão na quadra, irregular mas intermitentemente eficiente. Dividimos os dois primeiros sets com os italianos, que, conforme Lorimer predissera, não agüentaram a mão por muito tempo. Eu próprio fiz uma bolha no polegar no terceiro set e tive que parar. Mas a bolha nada era, comparada com o prazer de jogar tênis ao sol cálido de Roma, à beira do rio em que, de acordo com Shakespeare, César nadara com a armadura posta. Fazia tempo que não chovia e o rio parecia pequeno e inocente, bom para eu nadar.
Enquanto nos vestíamos, após um bom banho de chuveiro, os italianos convidaram-nos a almoçar lá mesmo, no clube, antes de voltarem para o trabalho.
– Escute aqui, parceiro – perguntou-me Lorimer -, é a primeira vez que você vem a Roma?
– O primeiro dia – respondi.
– Então não vamos comer aqui. Vamos a um lugar freqüentado por turistas. O Tre Scalini, na Piazza Navona. – Concordei. Também estava na lista de Fabian. – Sempre que alguém vem a Roma – disse Lorimer – aconselho-o a não esquecer que é turista. A ver e a fazer tudo o que está nos guias de turismo. O Vaticano, a Capela Sistina, o Castelo SantÂngelo, o Moisés, o Foro, etc. Afinal de contas, por algo figuram nos guias. Depois, a pessoa pode traçar seus próprios programas. Para ler, sugiro Stendhal. Você lê francês?
– Não.
– Que pena!
– Bem que gostaria de voltar à escola.
– Só você? – retrucou ele.
– Gostou do almoço? – perguntou Lorimer. Estávamos sentados no terraço, olhando para a grande fonte, com as quatro enormes figuras femininas representando os rios. Sem dúvida uma idéia muito melhor do que comer um sanduíche e beber uma cerveja no bar do clube.
– Muito – respondi.
– Não diga isso em voz alta – aconselhou Lorimer. – Em certos círculos sofisticados, fica bem dizer que a comida aqui é intragável. – Riu. – Você ficaria marcado como um americano de paladar inculto e teria dificuldade em conhecer uma principessa.
– Bem, posso dizer que gostei da vista, não?
– É melhor dizer que passou pela Piazza Navona por acaso. À noite. Isso, se o assunto vier à baila. – Ficou um momento olhando para a fonte. – Impressionantes, não?
– O quê?
– Essas quatro mulheres. É uma das razões por que prefiro Roma a Nova York, por exemplo. Aqui, você se s esmagado pela arte e pela religião, não pelo aço e o concreto das companhias de seguros e das corretoras.
– Há muito que você está aqui?
– Não tanto como eu gostaria. E os filhos da mãe estão procurando remover-me. – Levou a mão à altura do bolso interno do paletó, onde guardara o envelope que eu lhe dera. Tinha-o tirado, aberto e passado os olhos pelas páginas enquanto esperávamos que nos servissem. Quando tinham trazido o primeiro prato e o vinho, ele enfiara as folhas de volta no envelope sem comentários. – Está tudo aqui – disse, indicando novamente o bolso interno. – Estão querendo pegar-me. Eu sei e eles sabem que eu sei. Estamos todos esperando que alguém dê o primeiro passo. Mandei algumas recomendações que não foram recebidas… bem… com entusiasmo em certos setores. Forcei alguns contratos. Evelyn também está envolvida e a sua cabeça também está em jogo. Tentamos fazer chegar o dinheiro a quem de direito, neste belo e lamentável país, com seu povo desesperado… não às pessoas erradas. Uma diferença de opinião, possivelmente fatal. Não ande por aí dizendo que me conhece. Há espiões por todo lado. Quando eu voltar à minha mesa, os papéis terão sido remexidos. Pareço paranóico, não?
– Não sei – respondi -, embora Evelyn insinuasse…
– Não é a primeira vez que acontece – disse Lorimer – e tenho certeza de que não vai ser a última, com o que está havendo em Washington. O que McCarthy fez vai parecer brincadeira de criança, comparado com o que o pessoal que está na Casa Branca é capaz de fazer. Orwell enganou-se. Seu livro não devia chamar-se 1984, e sim 1973. Você acha que vão conseguir tirar aquele sujeito da Casa Branca?
– Não tenho acompanhado os acontecimentos – respondi, dando de ombros.
Lorimer olhou para mim com expressão estranha.
– Americanos – disse, meneando a cabeça. – Aposto como ainda vai estar lá nas próximas eleições. Com o pé nos nossos pescoços. Meu próximo posto será provavelmente em algum pequeno país africano, onde a cada três meses haja um golpe de Estado e matem os embaixadores americanos. Venha me visitar. – Riu e encheu um copo de vinho. Parecia tudo, menos assustado. – Acho que não lhe vou poder dedicar muito tempo, esta semana. Vou ter que ir a Nápoles. Mas no sábado estarei de volta para jogarmos tênis, e à noite há um joguinho de pôquer, quase todos jornalistas, ninguém da embaixada… Evelyn mandou dizer que você era ótimo jogador de pôquer…
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