– Seu amigo – disse o instrutor. – O Sr. Sloane. Por favor, venha. Ele estava enfiando os esquis…
– Fale mais baixo, por favor, Hans – pediu Fabian. Sabia o nome de todo mundo. Era uma das razões da sua popularidade entre garçons e recepcionistas. – Que foi que houve?
– Ele caiu para trás – disse o instrutor. – Caiu como um tronco. Acho que está morto.
Fabian olhou para mim com uma expressão curiosa em que eu poderia jurar que havia um brilho divertido.
– Bobagem, Hans – retrucou ele. – Acho melhor eu dar uma olhada. Lily, será preferível você ficar. Douglas, quer vir comigo? – Levantou-se e encaminhou-se rapidamente, o rosto grave e alvo de todos os olhares, para a porta. Segui-o. Nossas botas de esqui soaram como um batalhão de infantaria atravessando uma ponte. Ou um rufar de tambores para um americano desbocado, com uma promissória no valor de trinta mil dólares no bolso.
Uma pequena multidão estava agrupada em volta da saída das cadeiras aéreas, onde as pessoas colocavam os esquis. De repente, a tarde parecia ter parado. Sloane estava deitado de costas, olhando para o céu. Outro instrutor esfregava-lhe neve no rosto, que estava todo verde e roxo. Fabian ajoelhou-se ao lado do corpo, abriu o zíper do anoraque de Sloane, puxou para cima o suéter e a camisa pondo à mostra o peito do homem, cabeludo e branco. Comecei a tremer incontrolavelmente, os dentes batendo em espasmos involuntários. Fabian curvou-se e encostou o ouvido no peito de Sloane. Após o que parecia uma eternidade, levantou a cabeça, puxou a camisa e o suéter e fechou o zíper do anoraque.
– Acho melhor levá-lo imediatamente para o hospital – disse Fabian para os dois instrutores. – O mais depressa possível. – Levantou-se e passou a mão pelo rosto, como se a esconder sua tristeza. – Pobre homem – comentou -, bebia demais. A altitude e o frio súbito… Se vocês o carregarem até o teleférico – disse ele aos dois instrutores -, eu desço com ele. Telefonem pedindo que uma ambulância esteja à espera lá embaixo. Douglas, posso falar um momento com você?…
Passou o braço sobre meus ombros e levou-me para o lado, dois amigos do recém-falecido querendo ficar a sós por um momento, a fim de minorar o golpe da súbita perda. Parecia uma cena tirada de um filme de guerra classe B, pensei, desempenhando meu papel com convicção. A multidão, agora maior, afastou-se respeitosamente.
– Douglas, meu velho – sussurrou Fabian, batendo-me no ombro como que a consolar-me. – Não vou largar o cadáver. Quando descermos, tirarei a promissória do bolso dele. Você se lembra de que lado ficava o bolso?
– Isso é que é mostrar respeito pelos mortos – retruquei. – Do lado esquerdo.
– Admiro sua atitude, Alma Gentil. – Puxou-me para si num abraço fraterno, como se quisesse evitar que eu me deixasse abater. – Devo dizer, meu velho – murmurou -, que você é bamba, no que diz respeito a ataques cardíacos. – Deixou cair o braço e disse em voz alta, para que todos pudessem ouvir: – Você fica encarregado de dar a notícia a Lily. Coitada, que choque ela vai ter! Faça-a tomar um conhaque.
E encaminhou-se cabisbaixo pela neve até o teleférico, onde os dois instrutores amarravam o corpo numa das cadeiras. Fabian sentou-se ao lado e passou um braço protetor em volta do cadáver. Deu um sinal e a cadeira começou a descer lentamente.
Os dois instrutores instalaram-se na cadeira seguinte, guardas de honra, descendo até o vale nos seus anoraques berrantes para ajudar a transportar o morto.
Voltei ao clube, onde Lily terminava de tomar café, e mandei vir dois conhaques.
Quando voltei ao hotel, o recepcionista me disse que o Sr. Fabian me esperava em seu quarto. Era no fim da tarde. Eu e Lily tínhamos tomado vários conhaques, sentados em silêncio no restaurante aos poucos esvaziado. A morte exige almoços prolongados.
Eu tinha deixado Lily no cabeleireiro.
– Não há sentido – dissera ela – em desperdiçar a tarde toda. – Tínhamos descido de cadeirinha por uma questão de decoro. Descer de esqui, depois do que acontecera, teria parecido frívolo. Nenhum dos dois falara em Eunice.
– Qual foi a última coisa que você disse ao homem? – perguntou-me Lily, enquanto descíamos lentamente rumo ao vale sombrio.
– "Vá para o inferno" – respondi.
Ela assentiu com a cabeça.
– Foi isso o que pensei. Uma perfeita despedida. – Fez um gesto na direção dos picos a distância, brilhando ainda à luz do sol. A águia, ou o que quer que fosse, voltara a patrulhar o céu neutro da Suíça. – Há lugares piores para morrer – disse Lily rindo. – E despedidas piores. Se houvesse justiça neste mundo, ele deveria ter cortado a mulher do seu testamento.
– Tenho certeza de que não o fez.
– Eu disse: "Se houvesse justiça".
– Você acha que seu marido a cortou do testamento dele?
– Não seja tão americano – retrucou ela.
Não falamos mais nisso.
De volta ao hotel, parei numa loja e comprei um novo sobretudo. Didi Wales que ficasse com sua lembrança. Era um preço pequeno a pagar pela sua ausência.
Fabian estava fazendo as malas, quando entrei na suíte que ele ocupava com Lily. Não era dos que viajavam com pouca bagagem. Havia quatro malas espalhadas pelos dois quartos. Como de costume, havia jornais por todo lado, abertos nas páginas financeiras. Fabian fazia as malas com rapidez e ordem, sapatos num saco, camisas numa mala, em pilhas perfeitas.
– Vou acompanhar o corpo de volta aos Estados Unidos – disse ele. – É o mínimo que posso fazer, você não acha?
– Acho – concordei.
– Você tinha razão -: continuou ele. – A promissória estava no bolso esquerdo. Cuidaremos de todas as formalidades ainda hoje. Os suíços são muito eficientes quando se trata de mandar um estrangeiro morto para fora do país. Tinha só cinqüenta e dois anos. Um homem colérico. Autodestruidor. Uma lição para todos nós. Telefonei para a esposa. Recebeu a notícia corajosamente. Vai nos esperar, a mim e ao caixão, no Aeroporto Kennedy, amanhã. Já está cuidando de tudo. Por falar nisso, sabe onde Lily está?
– No cabeleireiro.
– Moça de sangue-frio! Admiro isso nela. – Tirou o fone do gancho e pediu para lhe ligarem com o cabeleireiro. Enquanto esperava, disse: – Importar-se-ia de nos levar de carro a Genebra, amanhã?
– Se a polícia me deixar sair da cidade – respondi. – Ainda não devolveram meu passaporte.
– Oh! – exclamou Fabian. – Quase ia me esquecendo. – Tirou meu passaporte do bolso e atirou-o sobre a mesa. – Aqui está ele.
– Como foi que você o conseguiu? – No fundo, eu não estava surpreso de que ele o tivesse reavido. Em parte contra a minha vontade, ele se firmara na minha imaginação como uma espécie de pai, enormemente poderoso, solucionador de problemas e mistérios, manipulador de homens e de leis. Folheei o passaporte, para ver se algo fora acrescentado ou subtraído. Não encontrei nada que indicasse que eu fora suspeito de um crime.
– O assistente da gerência deu-me o passaporte, quando eu entrei – disse Fabian, despreocupadamente. – Encontraram o colar.
– Quem o roubou?
– Ninguém. A dama o enfiara numa bota de esqui, por motivos de segurança, e se esqueceu de onde o pusera. O marido encontrou-o esta tarde. O assistente da gerência não sabia como pedir desculpas. Você vai encontrar um grande ramo de flores e uma garrafa de champanha em seu quarto, com um cartão de desculpas da gerência. Alô? – disse ele ao telefone. – Posso falar com Lady Abbott, por favor? – E, virando-se para mim: – Você não se incomoda de ficar uns dias só?
– Francamente – respondi -, nada me agradaria mais.
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