As cidades por onde passamos eram limpas e ordenadas, os campos geometricamente divididos, as casas, com seus grandes celeiros e telhados inclinados, testemunhas de uma vida pacífica e sólida, firmemente enraizada num passado próspero. Era uma paisagem de paz e continuidade, na qual não se podiam imaginar exércitos combatendo, fugitivos escapando, credores ou policiais perseguindo. Rechacei prontamente a idéia de que, se os policiais pelos quais de vez em quando passávamos e que polidamente nos mandavam seguir pelas ruas imaculadas soubessem a verdadeira história daqueles dois cavalheiros num automóvel reluzente, nos prenderiam imediatamente e nos escoltariam até a fronteira mais próxima.
Como não havia maneira de Fabian arriscar o nosso dinheiro enquanto estávamos na estrada, eu estava livre, pelo menos por um dia, de preocupações, da flutuação entre uma trêmula esperança e uma horrível ansiedade, que sempre me invadiam quando sabia que Fabian estava perto de um telefone ou de um banco. Nessa manhã, não precisara tomar nenhum Alka-Seltzer e sabia que, à hora do almoço, ia estar com apetite. Como de hábito, Fabian conhecia um ótimo restaurante em Berna e me prometera um almoço memorável.
O deslizante movimento do carro gerou, como tantas vezes acontece, agradáveis correntes sexuais no meu organismo e, enquanto dirigia, ia revivendo, na memória, os momentos culminantes da noite que passara em Florença com Lily e recordava, com prazer, a voz suave de Eunice, esperando por mim ao fim do dia, as sardas infantis no seu narizinho britanicamente arrebitado, sua esbelta garganta e seu busto à século XIX. Se nesse momento ela estivesse a meu lado, em vez de Fabian, eu não teria hesitado em me dirigir para um dos encantadores hotéis de madeira pelos quais passávamos, com nomes como Gasthaus Löwen e Hotel Drei Koenige, e pedir um quarto de casal para a tarde. Bem, consolei-me, prazer adiado é prazer aumentado, e pisei com mais força no acelerador.
Ao ver neve nos campos do alto da montanha, percebi que estava até pensando novamente em esquiar. Os dias passados na pesada atmosfera de Zurique, as conferências com advogados e banqueiros tinham-me feito ansiar pelo ar da montanha e o exercício violento.
– Você já esquiou em Gstaad? – perguntou Fabian. A vista da neve devia tê-lo feito pensar o mesmo que eu.
– Não – respondi. – Só em Vermont e em St.Moritz. Mas ouvi dizer que as pistas são fáceis.
– Pode-se quebrar a espinha lá – retrucou ele – como em qualquer outro lugar.
– Que tal são as moças esquiando?
– Esquiam como inglesas – disse ele, rindo. – Não desanimam facilmente. Você vai ver. Não são como a Sra. Sloane.
– Não me fale dela.
– Não deu certo, hem?
– Digamos que não.
– Não entendi por que você perdeu tempo com ela. Antes mesmo de conhecê-lo, achei que ela não era o seu tipo.
– E não era mesmo. Tudo aconteceu por sua culpa – falei.
– Como assim? – perguntou ele, espantado.
– Pensei que Sloane era você – expliquei.
– O quê?
– Pensei que ele apanhara minha mala. – E falei-lhe dos sapatos marrons e da gravata de lã vermelha, no trem de Chur.
– Puxa, que azar o seu! – exclamou Fabian. – Perder uma semana com a Sra. Sloane. Realmente, sinto-me culpado. Ela também enfiava a língua na sua orelha?
– Mais ou menos.
– Eu também passei por isso. No ano passado. Como foi que você descobriu que não se tratava de Sloane?
– Prefiro não responder. – No que me dizia respeito, a história de Sloane me encontrando com uma perna boa engessada, tentando enfiar meu pé no seu sapato e ele jogando o meu sapato e o relógio da mulher dele pela janela afora ia morrer comigo.
– Você prefere não responder – repetiu Fabian, ofendido. – Somos sócios, lembra-se?
– Lembro-me. Fica para outra vez – prometi. – Quando estivermos precisando dar umas boas risadas.
– Imagino que algum dia vamos precisar – falou Fabian. Permaneceu algum tempo em silêncio, enquanto avançávamos através de pinheirais admiravelmente preservados.
– Posso fazer-lhe uma pergunta, Douglas? – disse ele, por fim. – Você tem laços afetivos nos Estados Unidos?
Não respondi imediatamente. Pensei em Pat Minot, em Evelyn Coates, no meu irmão Hank, no lago Champlain, nas montanhas de Vermont, no quarto 602. Pensei também em Jeremy Hale e na Srta. Schwartz.
– Acho que não – respondi. – Por quê?
– Falando francamente – disse ele -, é por causa de Eunice.
– Como assim? Ela falou alguma coisa?
– Não. Mas você deve admitir que se tem mostrado muito reticente.
– Ela se queixou?
– A mim, não – disse ele. – Mas Lily insinuou que ela está intrigada. Afinal de contas, veio especialmente da Inglaterra… – Deu de ombros. – Você sabe o que quero dizer.
– Sim, eu sei. – Estava começando a me sentir mal.
– Você gosta de mulheres, Douglas?
– Ora, que é isso? – Lembrei-me do meu irmão em San Diego e entrei numa curva mais depressa do que o necessário.
– Estava só perguntando. Hoje em dia, nunca se sabe. Ela ê bem bonita, você não acha?
– Acho. Escute aqui, Miles – falei, mais indignado do que devia. – Se não me engano, a nossa sociedade não tem nenhuma cláusula segundo a qual eu tenha de fazer papel de garanhão.
– Que maneira mais crua de se expressar! – disse ele, mas riu. – Embora eu deva confessar que, no meu caso, de vez em quando não me tenha recusado a isso.
– Puxa, Miles! – exclamei. – Conheço a moça há só alguns dias. – Disse isso e logo me envergonhei da hipocrisia à qual ele me obrigava. Conhecia Lily havia quatro horas, quando fora ao quarto dela, em Florença. Quanto a Evelyn Coates… – Se você quer saber – disse eu -, não gosto do papel de amante público. – Finalmente, estava me aproximando da verdade. – Acho que fui educado de maneira diferente da sua.
– Ora! – disse ele. – Lowell não é assim tão diferente de Scranton.
– Você está brincando, Miles? – retruquei. – Nem que procurassem com uma lupa, encontrariam em você o menor resíduo de Lowell.
– Como você se engana! – disse ele. – Como você se engana! Douglas, acreditaria em mim se eu lhe dissesse que simpatizo muito com você, que os seus interesses me preocupam?
– Em parte – respondi.
– Para ser mais cínico – acrescentou ele -, principalmente quando os seus interesses coincidem com os meus.
– Aí, talvez – disse eu. – Mas aonde você quer chegar?
– Acho que devíamos colocá-lo no mercado de casamentos – declarou ele, num tom que traduzia uma decisão longamente meditada.
– Você está perdendo uma bela paisagem – disse eu.
– Estou falando sério. Preste atenção. Você tem trinta e três anos, não é mesmo?
– Sim.
– Dentro de um ou dois anos, deverá se casar.
– Por quê?
– Porque é o que todo mundo faz. Porque você é bastante bem-parecido. Porque vai ter pinta de solteiro rico. Porque alguma garota vai querer você para marido e vai escolher o momento exato para tomar a iniciativa. Porque, como você já me disse, está farto de viver só. Porque vai querer ter filhos. Não acha que tenho razão?
Lembrei-me, dolorosamente, do sentimento de privação e inveja que tivera quando telefonara a Jeremy Hale e sua filha atendera, dizendo numa voz pura e fresca: "Papai, é para você".
– Sim, acho que tem – admiti.
– Só estou sugerindo que você não deixe tudo nas mãos do acaso, como fazem os idiotas. Controle seu destino.
– Como é que eu vou fazer isso? Será que você vai me arrumar casamento e me fazer assinar um contrato? É assim que se faz, hoje em dia, no Principado de Lowell?
Читать дальше