Estaquei junto à porta. Duvidava de que eu ou Fabian fôssemos recebidos com satisfação.
– Elas não perderam tempo, hem? – comentei.
– Nunca pensei que perdessem – retrucou ele, como sempre senhor de si.
– Acho que vou subir e tomar um banho – disse eu. – Chame-me quando estiver pronto para jantar.
Fabian sorriu de leve.
– Medroso – disse ele.
– Bom proveito – retorqui. Saí do bar em meio a outra explosão de risadas masculinas. Fabian dirigiu-se para a mesa.
Ao me aproximar do balcão da recepção, um grupo de jovens entrou no hall, através de uma porta que dava para um boliche. Havia moças e rapazes, estes de cabelos compridos e alguns com barba, embora o mais velho não devesse ter mais de dezessete anos. A conversa era animada e estridente, tanto em francês como em inglês. Lembrei-me do que Fabian dissera sobre eu ter freqüentado a escola em Scranton e senti-me velho e desambientado. Uma das mocinhas, a mais bonita do grupo, olhava fixo para mim. Tinha longos cabelos louros e maltratados, que quase escondiam um rosto pequeno e rosado, e usava jeans muito justos, com flores bordadas em tons pastel sobre os jovens quadris. Empurrou o cabelo para trás num gesto lânguido, de mulher. Usava sombra verde, mas nada de batom. Seu olhar estava me pondo nervoso e virei as costas para pedir a chave do quarto.
– Sr. Grimes… – A voz era hesitante, estridente, infantil.
Olhei em volta. Ela deixara o resto do grupo sair pela porta da frente e ficara sozinha.
– O senhor é Douglas Grimes, não é? – perguntou.
– Sou.
– O piloto?
– Sou – respondi, no presente.
– O senhor não se lembra de mim, não é?
– Acho que não, desculpe-me.
– Meu nome é Didi Wales. Dorothea. Claro, já faz tanto tempo! Três anos. Tinha os dentes para fora e usava aparelho. – Sacudiu a cabeça e os longos cabelos louros taparam-lhe o rosto. – Eu não esperava que o senhor se lembrasse. Ninguém se lembra de uma garota de treze anos. – Atirou o cabelo para trás e sorriu, mostrando não mais precisar de aparelho. Seus dentes eram lindos, brancos, bem americanos. – Stowe – disse ela. – O senhor às vezes esquiava com minha mãe e meu pai.
– Claro! – exclamei, lembrando-me. – Como vão eles? Seu pai, sua mãe?
– Estão divorciados – respondeu ela. A notícia não me espantou. – Mamãe está se recuperando do choque em Palm Beach. Com um tenista. – Ela riu. – E eu estou confinada aqui.
– Não me parece assim tão mau – falei.
– Se o senhor soubesse! – disse ela. – Costumava ver o senhor esquiar. O senhor nunca se exibia, como os outros rapazes.
"Rapaz", pensei. Miles Fabian era a única pessoa que me tinha chamado "rapaz" depois que eu passara dos vinte anos.
– Eu distinguia o senhor – continuou a menina – mesmo a um quilômetro de distância. O senhor costumava esquiar com uma moça muito bonita. Ela está aqui com o senhor?
– Não – respondi. – A última vez que nos vimos, você estava lendo O Morro dos Ventos Uivantes.
– Coisa de criança – falou ela. – Uma vez o senhor desceu comigo a Suicide Six no meio de uma tempestade de neve. Lembra-se?
– Claro que me lembro – respondi, mentindo.
– O senhor é muito gentil em dizer que se lembra. Mesmo que não seja verdade. Foi a minha façanha do ano. O senhor acaba de chegar?
– Sim. – Era a primeira pessoa que me havia reconhecido desde que eu viera à Europa e esperava que fosse a última.
– Vai ficar muito tempo aqui? – Ela parecia uma meninazinha com medo de ficar só à noite, quando os pais saíssem.
– Alguns dias.
– Conhece Gstaad?
– Não. É a primeira vez que venho.
– Talvez eu o pudesse guiar, desta vez. – De novo o gesto lânguido de empurrar o cabelo para trás.
– Muito gentil da sua parte, Didi – disse eu.
– Espero que o senhor não tenha outros planos – retrucou ela, formal.
Um rapazinho barbado voltou ao hall e gritou:
– Didi, será que você vai ficar toda a noite aí, batendo papo?
Ela fez um gesto impaciente com a mão.
– Estou falando com um velho amigo da minha família. Caia fora! – Sorriu suavemente para mim. – Esses garotos de hoje! Pensam que são donos da gente. Bestas cabeludas! Nunca vi garotos tão mimados. O que será do mundo quando eles forem homens?
Procurei não sorrir.
– O senhor me acha engraçada, não é? – perguntou, num tom de acusação, agressivo e claro.
– Absolutamente.
– O senhor precisava vê-los chegando a Genebra depois das férias – disse ela. – Nos jatos particulares dos pais. Ou chegando à escola em Rolls-Royces. É uma autêntica parada de corrupção.
Dessa vez, não pude deixar de sorrir.
– O senhor acha graça na minha maneira de falar – disse ela, dando de ombros. – É que eu leio muito.
– Eu sei.
– Sou filha única – continuou ela -, e meus pais estavam sempre muito ocupados.
– Você alguma vez já fez análise? – perguntei.
– Não. – Deu novamente de ombros. – Claro que eles tentaram. Eu não os amava o suficiente, de modo que eles acharam que eu era neurótica. Tant pis 1para eles. O senhor fala francês?
– Não – respondi. – Mas acho que sei o que "tant pis" quer dizer.
– É uma língua supervalorizada – disse ela. – Tudo nela rima. Bem, gostei muito de bater papo com o senhor. Quando eu escrever para casa, mando lembranças suas para quem, para minha mãe ou para meu pai?
– Para os dois – disse eu.
– Para os dois – repetiu ela. – Que piada! Bom, bem-vindo à Terra-do-Nunca, Sr. Grimes! – Estendeu a mão e apertei-a. Era uma mão pequena, macia e seca. Desapareceu porta afora, agitando as flores bordadas no seu gorducho bumbum.
Meneei a cabeça, com pena dos pais dela, pensando que talvez ir à escola em Scranton não fosse assim tão mau. Peguei o elevador, subi e tomei um banho quente. Deitado na banheira, pensei em escrever um bilhete a Fabian e embarcar calmamente no próximo trem a sair de Gstaad.
Ao jantar, essa noite, estávamos só nós quatro à mesa, eu, Lily, Eunice e Fabian. O mais discretamente possível, pus-me a observar Eunice, procurando imaginar como seria sentar-se diante dela à mesa do café, dali a dez, vinte anos. Como seria tomar uma garrafa de vinho do Porto com o pai dela, que caçava três vezes por semana. Estar ao lado dela junto à pia batismal, durante o batismo dos nossos filhos. Miles Fabian como padrinho? Visitando nosso filho em… onde é que ele estudaria… Eton? Tudo quanto eu sabia dos colégios ingleses fora lido em livros escritos por homens como Kipling, Waugh, Orwell, Connolly. Decidi não matricular meu filho em Eton.
Aqueles poucos dias esquiando tinham dado a Eunice uma linda cor de verão. Estava usando um vestido de seda estampado que lhe marcava a silhueta. Com o busto que já tinha, como seria ela mais tarde? Como Fabian lembrara, o ditado dizia que era tão fácil amar uma moça rica quanto uma moça pobre. Mas seria mesmo?
Ver e ouvir Eunice e Lily rodeadas de jovens ociosos e arrogantes (ou, pelo menos, assim me pareciam) à mesa, com a garrafa dupla de champanha no meio, fizera-me fugir do bar. Não havia dúvida de que Eunice era uma bonita moça e provavelmente haveria sempre jovens como aqueles à sua volta. Como eu encararia isso, se ela fosse minha mulher? Nunca me dera ao trabalho de pensar a que classe eu pertencia ou a que classe outras pessoas podiam pensar que eu pertencia. Miles Fabian podia virar as costas a Lowell, Massachusetts, e fingir que era um fidalgo inglês. Já eu duvidava de que alguma vez me pudesse livrar de Scranton, Pennsylvania, e fingir que era mais do que eu era – um piloto incapacitado de voar, um homem que freqüentara uma escola técnica superior e que sempre vivera do ordenado. O que não cochichariam a meu respeito os convidados ao casamento, quando eu estivesse diante do altar, numa igreja do interior da Inglaterra, esperando que a noiva chegasse? Poderia convidar meu irmão Hank e a sua família? Meu irmão, locutor em San Diego?
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