– Até agora, você não me disse nada – lembrei-lhe.
– Isso mesmo. Não quero que você tire conclusões antecipadas. Espero que não tenha preconceitos contra os alemães…
– Que eu saiba, não tenho.
– Ótimo! – disse ele. – Muitos americanos ainda estão combatendo na Segunda Guerra Mundial. Oh, antes que me esqueça, a fim de explicar a sua presença, disse ao Sr. Steubel que você era o Professor Grimes, do departamento de arte da Universidade de Missouri.
– Meu Deus, Miles! – exclamei, quase espirrando o vinho. – Se ele entender alguma coisa de arte, em dez segundos perceberá que eu sou um completo ignorante. – Agora eu sabia por que razão Fabian passara a primeira metade da viagem calado e pensativo. Estivera inventando uma falsa identidade para mim.
– Eu não me preocuparia – disse Fabian. – É só você parecer grave e consciencioso, examinar com atenção tudo o que ele nos mostrar. E, quando eu lhe pedir sua opinião, hesite… você sabe como hesitar, não sabe?
– Continue – disse eu, sombrio. – Depois de hesitar, o que eu faço?
– Você diz: "À primeira vista, Sr. Fabian, parece autêntico". Mas então você acrescenta que gostaria de voltar amanhã, a fim de examinar melhor a obra, à luz do dia.
– Qual a vantagem disso?
– Quero que ele passe a noite sem dormir – explicou calmamente Fabian. – Ficará mais generoso amanhã. Lembre-se de não mostrar um entusiasmo indevido.
– Essa vai ser a coisa mais fácil que eu já fiz, desde que nos conhecemos – retruquei, azedo.
– Sei que posso confiar em você, Douglas.
– E quanto é que isto vai nos custar?
– Isso é o melhor de tudo – respondeu Fabian, alegremente. – Nada.
– Explique – exigi, cruzando os braços.
– Preferiria não explicar, por ora – disse Fabian, visivelmente irritado. – Seria muito melhor deixarmos as coisas correrem. Espero que entre nós haja uma certa confiança…
– Explique ou eu não vou – ameacei.
Ele abanou a cabeça, irritado.
– Muito bem, já que você insiste… Por motivos lá dele, o Sr. Steubel está se desfazendo de uma coleção de família. Acredita que, agindo dessa forma, poderá evitar contestações legais por parte de parentes afastados. E, naturalmente, ele prefere não pagar os impostos absurdos que os diversos governos cobram sobre esse tipo de transações. Para não falar das dificuldades com a alfândega, quando se pretende despachar obras de arte de um país para outro…
– Por acaso você está querendo me dizer que eu e você vamos contrabandear obras de arte para fora da Suíça?
– Devia me conhecer melhor, Douglas – disse ele, num tom de censura.
– Diga-me, então – pedi. – O que vamos fazer: comprar ou vender?
– Nem uma coisa nem outra – respondeu Fabian. – Somos simplesmente agentes. Agentes honestos. Há um ricaço sul-americano, que por acaso é meu conhecido…
– Mais um conhecido.
– Exatamente – disse Fabian. – Sei que ele é louco por pintura do Renascimento e está disposto a pagar regiamente por telas autênticas. Os países sul-americanos são famosos por sua discrição na importação de obras de arte. Deve haver milhares de grandes quadros europeus que atravessaram silenciosamente o oceano e agora enfeitam paredes sul-americanas, sem que ninguém saiba disso aqui na Europa.
– Você me disse que não íamos contrabandear nada da Suíça – falei. – A última vez que olhei no mapa, a Suíça não ficava na América do Sul.
– Não me venha com ironias, Douglas – pediu Fabian. – Não combinam com você. O sul-americano de que estou falando está atualmente em St.Moritz. É muito amigo do embaixador do seu país e a mala diplomática está sempre aberta para ele. Deu a entender que está disposto a pagar um máximo de cem mil dólares e acredito que o Sr. Steubel poderá ser convencido a nos pagar uma boa comissão sobre esse preço.
– O que é que você chama de uma boa comissão? – perguntei.
– Vinte e cinco por cento – disse, imediatamente, Fabian. – Vinte e cinco mil dólares apenas por atravessar de carro, uma das regiões mais pitorescas da bela Suíça… e tudo dentro da mais completa legalidade. Agora você entende por que em Zurique eu lhe disse que só depois iríamos a Gstaad?
– Entendo – disse eu.
– Por que esse tom de voz tão sombrio? – censurou Fabian. – Oh, incidentalmente, o quadro que vamos ver é um Tintoretto. Como professor de arte, você deverá saber reconhecê-lo. Não vai esquecer-se do nome, vai?
– Tintoretto – repeti.
– Excelente! – disse ele, sorrindo para mim. – Este vinho é uma delícia! – E encheu de novo ambos os copos.
Já estava escuro quando chegamos à villa do Sr. Steubel. Era uma casa quadrada, de dois andares, feita de pedra e pendurada no alto de uma estrada estreita e não iluminada, sobre o lago. Não se via nenhuma luz por entre as venezianas de madeira das janelas.
– Tem certeza de que é aqui? – perguntei a Fabian. Não parecia a mansão de um homem que se estava desfazendo de uma coleção de velhos mestres que herdara da família.
– Certeza absoluta – respondeu Fabian, desligando o motor do carro. – Ele me deu indicações explícitas.
Saímos do carro e atravessamos um jardinzinho malcuidado. Fabian tocou a campainha, mas não ouvi nada lá dentro. Tive a sensação de que estávamos sendo observados. Fabian tocou novamente a campainha e a porta finalmente se abriu. Uma velhinha de touca e avental de renda disse:
– Buona sera.
– Buona sera, signora – redargüiu Fabian, entrando. A velha mostrou-nos o caminho, coxeando pelo hall mal iluminado. Não havia nenhum quadro nas paredes.
Ela abriu uma pesada porta de carvalho e entramos numa sala de jantar iluminada por um lustre de cristal por cima da mesa. Um homem enorme e careca, com uma grande pança e uma barba de capitão de baleeiro, estava de pé à nossa espera, metido num terno de veludo cotelé amassado que incluía um par de calções curtos sob os quais se viam os seus maciços tornozelos, envoltos em meias de lã vermelhas. Atrás dele, sem moldura, iluminada pelo lustre, pendia uma tela escura, presa por tachas à parede amarelada. A tela representava uma madona e o menino, e devia ter uns setenta e cinco centímetros de largura por quase um metro de altura.
O homem saudou-nos em alemão, com uma pequena curvatura, e a velha saiu, fechando a porta atrás dela.
– Infelizmente, Sr. Steubel – disse Fabian -, o Professor Grimes não entende alemão.
– Nesse caso, vamos falar inglês – disse o Sr. Steubel. Seu inglês tinha apenas um leve sotaque alemão. – Ainda bem que o senhor pôde vir. Posso lhes oferecer algo de beber?
– Muito obrigado, Sr. Steubel – replicou Fabian. – Mas acho que não temos tempo. O Professor Grimes precisa telefonar às sete horas para a Itália. E, depois, para a América.
O Sr. Steubel pestanejou e esfregou as mãos, como se elas estivessem suadas.
– Espero que o professor consiga logo a ligação para a Itália – disse ele. – O sistema telefônico daquele país… – Não terminou a frase, mas eu tive a impressão de que ele não queria que ninguém telefonasse para lugar algum.
– Com licença – disse eu, dando um passo na direção da tela.
– Por favor. – O Sr. Steubel saiu do caminho.
– Naturalmente, o senhor tem os documentos? – perguntei.
Ele voltou a esfregar as mãos, só que agora com mais força.
– Claro que tenho. Mas não aqui comigo. Estão na… na minha casa, em… em Florença.
– Entendo – disse eu, friamente.
– Seriam precisos alguns dias – disse Steubel. – E o Sr. Fabian diz que tem pressa… – Voltou-se para Fabian. – O senhor não me disse que o cavalheiro em questão vai embora no fim da semana?
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