– Quando é que você tem de voltar para Jock?
Ela olhou vivamente para mim.
– Como é que você sabe a respeito de Jock?
– Deixe pra lá – respondi. Ela me ferira empurrando-me para a irmã e eu queria vingar-me de alguma maneira.
– Miles diz que nunca mais vai jogar bridge ou gamão. Você sabe por quê?
– Tenho uma idéia – respondi.
– Mas não vai me contar.
– Não.
– Miles é um homem complicado – disse ela. – Adora dinheiro, seja de quem for. Tome cuidado com ele.
– Obrigado. Terei.
Ela inclinou-se por cima da mesa e agarrou-me a mão.
– Adorei Florença – disse, baixinho.
Por um torturante momento, quis agarrá-la, pedindo-lhe que fugisse comigo.
– Lily!… – exclamei, repentinamente.
– Não seja tão impressionável, querido – disse ela, retirando sua mão. – Lembre-se sempre disso.
Fabian retornou, trazendo no rosto uma expressão grave.
– Tive que ceder – falou, sentando-se à mesa e servindo-se de mais caviar. – Chegamos aos quarenta e cinco mil. – Sorriu. – Acho que precisamos de uma boa garrafa de champanha.
Eu estava sentado no meu quarto de hotel, diante da grande secretária de carvalho entalhado. Antes de entrar, dissera "boa noite" a Lily e a Fabian, cuja suíte ficava bem ao lado, dando também para o Mediterrâneo. Lily beijara-me na face e Fabian apertara-me a mão.
– Durma bem – dissera ele. – Quero aproveitar a manhã para mostrar-lhe algo, antes de partirmos para Zurique.
Estava me sentindo um pouco tonto de tanto champanha, mas não tinha sono. Peguei numa folha do papel de carta do hotel e comecei a escrever, quase a esmo.
"Prêmio", escrevi, "- 20 000. Ouro – 15 000. Bridge e gamão – 36 000… Filme?"
Olhei para o que tinha escrito, semi-hipnotizado. Antes, mesmo quando ganhava bem na companhia de aviação, nunca me dera ao trabalho de somar meu livro de cheques e nem sequer soubera ao certo o que tinha no bolso. Agora, estava decidido a manter uma contabilidade semanal. Ou, da maneira como as coisas iam, diária. Tinha descoberto um dos maiores prazeres do dinheiro: o de somá-lo. Os números naquela folha davam-me uma satisfação maior do que a que poderia alcançar se comprasse algo com o dinheiro que aqueles números representavam. Cheguei a pensar, momentaneamente, se aquilo poderia ser considerado como um vício de que eu me devesse sentir envergonhado Mais tarde debateria isso.
Ouvi um som inconfundível vindo do quarto ao lado e estremeci. Até que ponto podia confiar em Fabian? Sua atitude para com o dinheiro, seu e dos outros, era pelo menos cavalheiresca. E não havia nada no que eu sabia do seu caráter e seu passado que sugerisse um compromisso formal com a honestidade fiscal. Não podia deixar passar mais um dia sem exigir que legalizássemos nossa situação por meio de um documento. Mesmo assim, sabia que teria de vigiá-lo constantemente.
Quando finalmente adormeci, sonhei com meu irmão Hank, triste diante de suas máquinas de somar, lidando com o dinheiro dos outros.
Na manhã seguinte, tivemos, finalmente, uma chance de conversar. Lily tinha hora marcada no cabeleireiro e Fabian disse que- queria levar-me ao Museu Maeght, em St. Paul-de-Vence.
Saímos de Nice com Fabian ao volante do carro alugado. O trânsito era pouco, o mar estava calmo, à nossa esquerda, e a manhã estava linda. Fabian guiava com cuidado, prudentemente, e eu descansava ao lado dele, a euforia da noite anterior ainda não inteiramente dissipada pela luz do dia. Viajamos em silêncio até sairmos de Nice e passarmos além do aeroporto. De repente, Fabian disse:
– Você não acha que eu devia conhecer as circunstâncias?
– Que circunstâncias? – perguntei, embora pudesse imaginar do que era que ele estava falando.
– Como foi que o dinheiro foi parar em suas mãos. Por que achou que devia sair dos Estados Unidos. Imagino que você estivesse correndo perigo. De certa forma, eu também agora poderia correr, não acha?
– Sim, de certa forma – concordei.
Estávamos subindo os contrafortes dos Alpes-Marítimos, a estrada ziguezagueando por entre florestas de pinheiros, plantações de oliveiras e vinhedos, o ar puro e perfumado. Naquela paisagem inocente, sob o sol mediterrâneo, a idéia de perigo parecia absurda, as ruas escuras da noite nova-iorquina remotas, como se fizessem parte de um outro mundo. Eu teria preferido não falar, não porque desejasse esconder os fatos, mas porque queria gozar daquele esplêndido presente, sem lembranças sinistras a turvá-lo. Mas reconhecia que Fabian tinha todo o direito de saber. Enquanto subíamos por entre os montes floridos, contei-lhe tudo, do princípio ao fim.
Ele ouviu em silêncio e, quando terminei, falou:
– Supondo que continuemos a ser bem sucedidos nas nossas… operações… – sorriu – como temos sido até agora… Supondo que em pouco tempo pudéssemos devolver os cem mil dólares e ainda ficar com bastante… Você procuraria descobrir a verdadeira identidade do seu legítimo dono e devolver o dinheiro a seus herdeiros?
– Não – respondi. – Não procuraria.
– Ótima resposta! – disse ele. – Não sei como você poderia fazer isso sem pôr alguém na sua pista. Na nossa pista. Tem de haver um limite para a curiosidade malsã. Houve alguma indicação de que você está sendo procurado?
– Só o que aconteceu com Drusack.
– Eu teria tomado isso como um bom aviso. – Fabian fez uma pequena careta. – Você, antes disto, teve algo a ver com criminosos?
– Não.
– Eu tampouco. Isso talvez seja uma vantagem. Não sabemos como eles pensam, de modo que não cairemos na tentação perigosa de procurar passar-lhes a perna. Ainda assim, acho que até aqui você agiu certo, não parando nunca num lugar. Durante algum tempo, acho que será prudente continuar. Você não se importa em viajar, não é?
– Adoro viajar – respondi. – Principalmente agora, que posso viajar confortavelmente.
– Já lhe passou pela cabeça que o caso pode não ter nada a ver com criminosos?
– Não.
– Li nos jornais, há algum tempo, que um homem morreu num acidente de avião e encontraram com ele sessenta mil dólares. Tratava-se de um preeminente republicano a caminho da sede do Partido Republicano na Califórnia. Foi durante a segunda campanha presidencial de Eisenhower. O dinheiro que você encontrou podia ser uma contribuição secreta para uma campanha eleitoral.
– Talvez – disse eu. – Só que um preeminente republicano jamais se hospedaria no Hotel St. Augustine…
– Bem… – Fabian deu de ombros. – Esperemos nunca descobrir a quem pertencia esse dinheiro ou a quem se destinava. Acha que seu irmão lhe pagará os vinte e cinco mil que você lhe emprestou?
– Não. Acho que não.
– Você é um homem generoso. Gosto disso. É uma das coisas boas de se ter dinheiro. Leva à generosidade. – Estávamos entrando no terreno do museu. – Veja isto, por exemplo – disse Fabian. – Soberbo edifício, esplêndida coleção, maravilhosamente apresentada. Que satisfação deve ter sido assinar o cheque que tornou tudo isto possível!
Estacionou o carro, saímos e encaminhamo-nos para o belo e severo edifício erigido no alto de um morro, rodeado por um parque em que enormes estátuas angulares, colocadas entre a folhagem das árvores, pareciam também estar a ponto de adquirir movimento.
Ao entrar no museu, que estava quase deserto, fiquei impressionado com as obras expostas. Nunca fora muito de freqüentar museus e minha experiência de artes plásticas se resumia a pintores e escultores tradicionais. Mas ali havia formas que só existiam nas mentes dos artistas, manchas em telas, distorções de objetos cotidianos e do corpo humano que me diziam muito pouco. Fabian, pelo contrário, ia lentamente de uma obra para outra, silencioso, expressão concentrada. Quando por fim saímos e nos dirigimos para o carro, ele suspirou profundamente, como se estivesse se recuperando de um tremendo esforço.
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