– Acho que você tem instintos de falido, meu amigo – retrucara Fabian. – Você ainda não é suficientemente rico para gostar tanto de cavalos a ponto de não querer vendê-los. Esse sentimento exagerado de posse também se aplica à sua atitude para com as mulheres. – E olhou para Lily. Em Paris, houvera um clima de tensão entre eles. Fabian tivera demasiadas conferências comerciais com Nadine, a horas mortas. Quanto a mim, evitara ir ao estúdio onde o filme estava sendo feito e nunca mais vira nenhuma das pessoas que trabalhavam nele. O sinal de ocupado no telefone ainda não fora esquecido.
– Sabem o que vamos fazer? – perguntou Fabian. – Comprar um carro. Vocês têm alguma objeção ao Jaguar?
Nem eu nem Lily tínhamos qualquer coisa contra o Jaguar.
– Um Mercedes daria muito na vista – continuou ele. – Não vamos querer parecer nouveaux-riches [4] . De qualquer maneira, gosto de estimular a pobre indústria britânica.
– Apoiado! – disse Lily.
O garçom trouxe o caviar.
– Só limão, obrigado – disse Fabian, mandando de volta o prato com ovos cozidos e cebolas picadas. – Não queremos diluir o prazer.
O garçom colocou pequenos montes de pérolas cinzentas nos nossos pratos. Aquela era a quarta vez, em toda a minha vida, que eu provava caviar. Lembrava-me claramente das outras três vezes.
– Tomamos um avião para Zurique – disse Fabian -, onde eu tenho um negócio a resolver, e lá podemos comprar o carro. Acho que na Suíça estão os únicos vendedores de automóveis honestos que há no mundo. Além disso, em Zurique há um hotel de primeira que eu gostaria que Douglas conhecesse.
"Puxa", pensei, "se Miles Fabian voltasse a Lowell, Massachusetts! Ou se Drusack pudesse me ver agora." Mas logo me arrependi de ter pensado em Drusack. Fabian ainda não me perguntara por que cargas d'água eu estava carregando setenta mil dólares numa mala e eu tampouco lhe contara. A verdade é que havia ainda muita coisa para conversar. Em Paris, Fabian passara a maior parte do tempo no estúdio, aprendendo o métier [5] , como ele dizia, enquanto eu bancava o turista, percorrendo a cidade. Quando estávamos juntos, Lily também quase sempre estava presente, e nenhum de nós dois, tinha a certeza, queria que ela soubesse dos detalhes da nossa sociedade, que era como eu agora a considerava. Quanto a ela, se achara estranho que o seu amante de uma noite em Florença tivesse aparecido noutro país como amigo e sócio do seu amante de alguns anos, não dera sinais disso. Como eu mais tarde constataria, desde que fosse admirada, alimentada e levada a lugares interessantes, ela não fazia perguntas. Tinha um desdém aristocrático pelo maquinismo por trás dos acontecimentos. Era uma dessas mulheres impossíveis de imaginar numa cozinha ou num escritório.
– Gostaria de trazer à baila um assunto delicado – disse Fabian, colocando destramente uma porção de caviar na sua torrada, sem deixar cair nem uma só ovinha. – Trata-se de números. Ou melhor, do número 3. – Olhou para Lily e depois para mim. – Entendem o que estou querendo dizer?
– Não – respondi.
Lily não disse nada.
– Não é um bom número para viajar – continuou Fabian. – Pode levar à divisão, ao subterfúgio, ao ciúme, à tragédia.
– Estou entendendo – falei, sentindo um calor subir-me pelo pescoço.
– Sem dúvida você concorda, Douglas, em que Lily é uma bela mulher.
Fiz que sim.
– E Douglas é um rapaz bem simpático – prosseguiu Fabian, num tom paternal e tolerante. – Que vai ficar ainda mais bem-parecido à medida que for se acostumando ao dinheiro e depois que tiver um guarda-roupa novo, o que eu pretendo providenciar tão logo cheguemos a Roma.
– Sim – disse Lily, olhando fixamente para o prato.
– Temos de enfrentar a verdade. Estou ficando velho. Espero que ninguém me contradiga.
Ninguém o contradisse.
– As chances de aborrecimentos são óbvias – disse Fabian, servindo-se de mais caviar. – Se você conhece alguma mulher com quem gostaria de viajar, Douglas, por que não entra em contato com ela?
A imagem de Pat veio-me imediatamente à idéia, numa onda de ternura, mesclada de arrependimento. Raramente pensara nela, durante os anos em que trabalhara no St. Augustine. O gelo protetor que tomara conta de mim naquele último dia em Vermont estava se derretendo rapidamente na companhia de Lily e Fabian. Tinha de reconhecer que, quisesse eu ou não, estava uma vez mais exposto a velhas emoções, a antigas lealdades, a lembranças de prazeres distantes. Mas, mesmo que Pat estivesse livre para viajar, não a podia imaginar aceitando as minhas relações com Fabian ou o seu ostensivo e luxuoso estilo de vida. A moça que doava uma parte do seu pequeno ordenado de professora para os refugiados de Biafra não poderia aprovar a atitude daquele homem sentado à minha frente, servindo-se de caviar. Ou a minha atitude. Evelyn Coates seria uma candidata mais apropriada a fazer parte do nosso pequeno grupo, mas quem poderia dizer qual das Evelyn Coates apareceria – a mulher surpreendentemente vulnerável daquela última noite de domingo, no meu quarto de hotel, ou a mulher abrasiva que eu conhecera no coquetel de Hale e no jogo de pôquer em Washington? Tinha também de levar em conta a possibilidade de que, de uma maneira ou de outra, eu e Fabian poderíamos ser desmascarados. Em nada favoreceria a sua carreira de advogada do governo se um dia ela fosse acusada de andar com um par de ladrões.
– Receio não me lembrar de ninguém, assim de repente – falei.
Pareceu-me detectar a sombra de um sorriso no rosto de Lily.
– Lily – perguntou Fabian -, o que sua irmã Eunice anda fazendo?
– Passando em revista os Coldstream Guards, em Londres – respondeu ela. – Ou a Guarda Irlandesa. Não sei qual a guarnição de serviço no palácio.
– Você acha que ela gostaria de fazer parte do nosso grupo?
– Acho – disse Lily.
– Acha que, se você lhe mandar um telegrama, ela poderá encontrar-se conosco amanhã à noite no Hotel Baur au Lac, em Zurique?
– Provavelmente – respondeu Lily. – Eunice está sempre pronta a viajar. Vou lhe telegrafar assim que voltarmos ao hotel.
– Você concorda com a sugestão, Douglas?
– Por que não? – Parecia-me a sugestão mais fria que eu já ouvira, mas meus companheiros eram frios. Em Roma, sê romano. Caviar e circo.
O maître veio até a nossa mesa dizer a Fabian que havia um telefonema para ele dos Estados Unidos.
– O que você acha, Douglas? – perguntou Fabian, levantando-se da mesa. – Qual o mínimo que você está disposto a aceitar? Podemos descer até quarenta, se necessário?
– Isso é com você – retruquei. – Nunca na minha vida vendi um cavalo.
– Nem eu. – Fabian sorriu. – Mas há sempre uma primeira vez para tudo. – E seguiu o maître.
O único barulho, no terraço, era o dos dentes de Lily roendo sua torrada. Aquele barulhinho estava me pondo nervoso. Sentia que ela olhava especulativamente para mim.
– Foi você – perguntou ela – quem quebrou o abajur na cabeça de Miles?
– Ele disse que fui eu?
– Disse que tinha havido um ligeiro mal-entendido.
– Por que não deixamos as coisas assim?
– Como você quiser. – Continuou a roer a torrada. – Você lhe falou de Florença?
– Não. E você?
– Não sou idiota – respondeu ela.
– E ele suspeita?
– É demasiado orgulhoso para suspeitar.
– E o que vamos fazer agora?
– Esperar Eunice – disse Lily calmamente. – Você vai gostar de Eunice. Tudo quanto é homem gosta. Por um mês, aproximadamente. Estou desejando ter férias.
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