Pouco antes de sair do quarto (ela insistiu para que eu saísse antes que os empregados começassem a andar pelos corredores), perguntei-lhe se não gostaria de almoçar comigo.
– Se não receber um telefonema – respondeu. – Vai embora sem me dar um beijo?
Curvei-me e beijei-lhe a linda boca. Seus olhos estavam fechados e tive a impressão de que ela adormecera antes que eu fechasse a porta.
Atravessando o corredor rumo a meu quarto, senti-me tomado de otimismo. Em Zurique, St.Moritz, Davos, Milão e Veneza, nada de bom me acontecera. Até essa noite. O futuro ainda era incerto, mas havia raios de esperança.
Grande dia de São Valentim!
Exausto pela noite maldormida do meu primeiro dia em Florença e pelas horas de amor, caí na cama e dormi profundamente até quase o meio-dia.
Quando acordei, fiquei deitado olhando para o teto, sorrindo para mim mesmo. Estendi a mão para o telefone e pedi que me ligassem com Lady Abbott. Após uma longa pausa, ouvi a voz do recepcionista.
– Lady Abbott deixou o hotel às dez da manhã. Não, não deixou nenhum recado.
Foram necessárias dez mil liras e uma mentira para obter o endereço de Lady Abbott de um dos auxiliares da recepção. Lady Abbott recomendara que lhe enviassem qualquer correspondência, mas que não dessem seu endereço a ninguém. Ao mesmo tempo em que punha a nota de dez mil liras nas mãos do empregado do hotel, explicava-lhe que a senhora esquecera uma jóia de grande valor no meu quarto e que eu precisava devolvê-la pessoalmente.
– Bem – disse o homem -, é o Hotel Plaza-Athénée, em Paris. Por favor, explique as circunstâncias especiais a Lady Abbott.
– Naturalmente – retruquei.
No dia seguinte ao meio-dia eu estava em Paris, hospedando-me no Plaza-Athénée. Antes de poder perguntar o preço do apartamento, vi Lady Abbott atravessando o hall de braço com um homem grisalho, de bigode britânico e óculos escuros. Os dois riam muito. Não era a primeira vez que eu via aquele homem. Tratava-se de Miles Fabian, o jogador de bridge do Palace Hotel, em St.Moritz.
Eles não olharam em minha direção e saíram pela porta rumo ao dispendioso sol da Avenue Montaigne, um casal de amantes na cidade dos amantes, a caminho de um almoço a dois, esquecidos do resto do mundo, esquecidos de mim, ali, a poucos passos de onde eles tinham passado, com um punhal na maleta e a morte no coração.
Na manhã seguinte, eu estava no hall do hotel às oito e meia. Duas horas mais tarde, ela atravessava o hall e saía. Em Florença, eu nunca a vira à luz do dia. Era ainda mais linda do que eu me recordava. Se havia uma mulher feita de encomenda para corresponder ao sonho americano de um fim de semana proibido em Paris, essa mulher era Lily Abbott.
Cuidei para que Lily não me visse e, depois que ela saiu, subi ao meu quarto. Não podia saber quanto tempo ela estaria ausente do hotel, de modo que agi rapidamente. Tinha feito a mala de Fabian, com todos os seus pertences, o paletó quadriculado em cima, conforme o encontrara. Telefonei para a portaria e pedi que mandassem apanhar uma mala no meu quarto e levá-la ao apartamento do Sr. Fabian.
Tinha o abridor de cartas em forma de punhal no bolso, dentro do estojo de couro. A adrenalina espalhava-se pelo meu organismo e minha respiração era ofegante. Não tinha nenhum plano, além de entrar no quarto de Fabian e confrontá-lo com sua valise.
Bateram à porta e abri ao rapaz das malas. Segui-o até o elevador e o vi apertar o botão do sexto andar. Tudo acontece no sexto andar, pensei, enquanto subíamos em silêncio. Quando o elevador parou e a porta se abriu, fui atrás dele pelo corredor. Nossos passos eram abafados pelo pesado tapete. Não encontramos ninguém. Estávamos no silencioso território dos ricos. O homem pousou a mala à porta da suíte e ia bater, quando eu o detive.
– Pode deixar – falei, apanhando a mala – que eu levo. O Sr. Fabian é meu amigo. – Dei-lhe cinco francos de gorjeta, o rapaz agradeceu e foi embora.
Bati de leve na porta. Ela se abriu e apareceu Fabian, todo vestido, pronto para sair. Finalmente, estávamos frente a frente, eu e o parceiro de Sloane baralhando cartas, tardes e noites seguidas, à vontade nos antros dos ricos. Ladrão! Piscou de leve, como se não me pudesse ver bem.
– Sim? – perguntou, delicadamente.
– Acho que isto lhe pertence, Sr. Fabian – disse eu, e fui entrando com a mala num pequeno hall que levava a uma grande sala cheia de jornais em várias línguas. Por todos os lados havia jarros com flores. Eu não queria nem pensar quanto ele estaria pagando por dia naquela suíte. Ouvi-o fechar a porta atrás de mim e pensei se por acaso ele não estaria armado.
– Escute – disse ele, virando-se para mim -, deve haver algum engano.
– Não há engano algum.
– Quem é o senhor? Não nos conhecemos de algum lugar?
– De St.Moritz.
– Ah, claro. O senhor é o jovem que acompanhava a Sra. Sloane. Temo não me lembrar do seu nome. Algo assim como Gr-Grimm, não?
– Grimes.
– Grimes. Desculpe-me. – Estava absolutamente calmo. Sua voz era agradável. Procurei controlar minha respiração. – Eu estava de saída – disse ele. – Mas posso dispor de uns momentos. Queira sentar-se, por favor.
– Prefiro ficar de pé, se não se importa. – Fiz um gesto na direção da mala, que depositara no meio da sala. – Gostaria apenas que o senhor abrisse sua mala e verificasse que nada está faltando…
– A minha mala? Meu caro senhor, eu nunca…
– Sinto ter partido o fecho… – prossegui. – Aconteceu antes de eu verificar que a mala não era minha.
– Não sei de que é que o senhor está falando. É a primeira vez que vejo essa mala. – Se ele tivesse ensaiado um ano para aquele momento, não teria sido mais convincente.
– Quando o senhor tiver acabado de passar em revista a mala e vir que eu não tirei nada – falei -, agradeceria se me desse a minha mala. Com tudo o que estava nela, quando o senhor a pegou em Zurique. Tudo.
Ele deu de ombros.
– Não estou entendendo nada. Se o senhor quiser, pode revistar o apartamento e ver, com os seus próprios olhos, que…
Enfiei a mão no bolso e puxei a carta de Lily Abbott.
– Isto estava no seu paletó – disse. – Tomei a liberdade de lê-la.
Ele mal olhou para a carta.
– Isto está ficando cada vez mais misterioso – comentou, fazendo um gesto como quem diz que é demasiado bem-educado para ler cartas de outras pessoas. – Não há nomes, não há datas. – Atirou a carta para cima de uma mesa. – Pode ter sido escrito para qualquer pessoa, por qualquer pessoa. De onde o senhor tirou a idéia de que essa carta poderia relacionar-se comigo? – Seu tom de voz estava ficando impaciente.
– Lady Abbott deu-me a idéia – respondi.
– Ah, sim? – retrucou ele. – Devo confessar que ela é minha amiga. Como está ela?
– Há dez minutos atrás, quando a vi no hall do hotel, ela estava muito bem – disse eu.
– O quê, Grimes? Não me diga que Lily está aqui no hotel!
– Chega de fingimento – falei. – O senhor sabe muito bem por que estou aqui. Quero os meus setenta mil dólares.
Ele soltou uma gargalhada quase autêntica.
– O senhor está brincando, não está? Foi Lily quem o mandou aqui? Ela adora pregar peças.
– Quero os meus setenta mil dólares, Sr. Fabian – insisti, num tom de voz o mais ameaçador possível.
– O senhor deve estar louco – disse Fabian, irritado. – Sinto muito, mas tenho que sair.
Agarrei-o pelo braço, lembrando-me do zarolho de Milão.
– O senhor não vai sair daqui enquanto eu não receber de volta o meu dinheiro – falei, numa voz que não saiu como eu queria. A situação requeria um baixo e eu era apenas um tenor… e esganiçado.
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