Despedi-me de Davos, com suas legiões de fantasmas expectorantes, feliz por conseguir sair das regiões da neve. O trem de Zurique a Florença passava por Milão e resolvi desembarcar e pernoitar nesta última cidade, aproveitando para ir ver A última ceia perder tristemente as cores, no muro de pedra da igreja em ruínas. Leonardo da Vinci ajudou-me a achar que havia uma saída possível para a comédia. Milão estava coberta de fog e eu me deixei embeber em cicatrizante melancolia.
Tive apenas um momento de preocupação, quando fui seguido, ao longo da arcada que há bem no centro de Milão, por um rapaz moreno de sobretudo comprido que esperava à porta do café onde eu entrara para tomar um espresso. Sentira-me em segurança, embora não à vontade, na Suíça, mas em Milão não pude deixar de pensar no que tinha lido sobre as ligações italianas com o crime organizado, na América. Mandei vir outro espresso e tomei-o bem devagar, mas o homem não se mexeu. Eu não podia ficar toda a vida no café, de modo que paguei e saí, caminhando rapidamente.
O homem do sobretudo comprido atravessou correndo a arcada e segurou-me o cotovelo. Era zarolho, o que o fazia parecer extremamente ameaçador, e sua mão no meu cotovelo era como uma garra de aço.
– Ei, chefe – disse ele, caminhando a meu lado. – Qual a pressa?
– Estou atrasado para um encontro. – Procurei livrar-me dele, mas foi inútil.
Enfiou a outra mão no bolso e temi o pior.
– Quer comprar uma jóia verdadeira? – perguntou. – Uma pechincha? – Soltou-me e puxou algo que tilintava, embrulhado em papel de seda. – Lindo presente para uma dama. – Tirou o papel e vi que era uma corrente de ouro.
– Não tenho dama – respondi, recomeçando a andar.
– Linda jóia – insistiu ele. – O senhor pagaria duas, três vezes mais, na América.
– Desculpe, mas não adianta – atalhei.
O homem suspirou e eu deixei-o embrulhando a corrente e guardando-a de volta no bolso.
Enquanto me afastava, pensava que qualquer esperança que eu pudesse ter tido de passar despercebido entre os povos da Europa era ridícula. Aonde quer que eu fosse, seria apontado, por quem quer que tivesse algum interesse em mim, como americano. Pensei em deixar crescer a barba.
No dia seguinte, sentindo que talvez nunca mais tivesse essa oportunidade, tomei o rápido para Veneza, cidade que, acreditava, e não me enganava, seria mais triste que Milão naquela época do ano. Os canais brumosos, o lamento das buzinas dos barcos, a água escura e o musgo, à luz cinzenta do inverno adriático, contribuíram para restaurar o meu sentido de dignidade e apagar a lembrança da atlética frivolidade de St.Moritz. Li, com satisfação, que Veneza estava afundando no mar. Hospedei-me numa pensão barata e fiquei visitando igrejas, bebendo um vinho branco e leve, chamado soave, em cafés adjacentes à Piazza San Marco, e observando os italianos, ocupação divertida e agradável. Evitei o Harry's Bar, que eu temia fosse freqüentado por americanos, mesmo fora da estação. Só havia um americano que me interessava e eu não tinha nenhuma razão para crer que ele estivesse em Veneza nessa semana.
O pequeno passeio me fizera muito bem. Meus nervos, que na Suíça tinham ficado arrasados, agora pareciam de novo fortes. Cheguei ao Hotel Excelsior, em Florença, na noite de 13 de fevereiro, confiante em que me sairia bem quando chegasse o momento do confronto.
Após um jantar excelente, caminhei pelas ruas de Florença, parando um momento diante da monumental cópia da estátua do David de Michelangelo, na Piazza delia Signoria, que me fez meditar sobre a natureza do heroísmo e a derrota da vileza. Florença, com sua história de intrigas e vendettas, seus Guelfos e Gibelinos, era a cidade adequada para enfrentar o meu inimigo.
Naturalmente, não dormi bem e acordei antes que a luz da aurora se refletisse no Amo, abaixo da minha janela.
Antes mesmo de tomar o café, interroguei o recepcionista sobre os horários dos vôos Londres-Milão e das chegadas dos trens da linha Milão-Florença. Pelos meus cálculos, a dama chegaria às cinco e trinta e cinco.
A essa hora, eu estaria no hall do hotel, estrategicamente colocado para poder observar qualquer hóspede do sexo feminino que se dirigisse à recepção para assinar a ficha. E qualquer homem um pouco mais baixo do que eu, que pudesse acompanhá-la ou levantar-se para dar-lhe as boas-vindas.
Passei o dia bebendo café bem forte, mas nada de álcool, nem mesmo uma cerveja. Por dever para com o meu papel de turista, percorri a Galleria degli Uffizi, mas a gloriosa mostra de arte florentina não me impressionou fortemente. Teria de voltar numa outra oportunidade.
Fiz apenas uma compra, numa loja de souvenirs: um abridor de cartas, em forma de punhal, com um cabo de prata entalhado. Recusei-me a analisar os motivos exatos da compra, fingindo ter apenas gostado inocentemente do abridor ao vê-lo na vitrina.
Ao fim da tarde, comprei o Rome Daily American e instalei-me numa das adornadas poltronas do hall do hotel, não demasiado perto da porta e da recepção, mas de modo a poder ver claramente a área crítica. Estava usando minha própria roupa. Não queria afugentar ninguém, usando o paletó quadriculado ou as camisas de listras berrantes que havia na mala.
Às seis horas, já tinha lido o jornal duas vezes de fio a pavio. Os únicos novos hóspedes que haviam chegado eram uma família de americanos, pai gordo e barulhento, mãe cansada e com sapatos confortáveis, três crianças magrelas e pálidas, vestindo japonas idênticas. Tinham vindo de Roma de carro, ouvi-os dizer; as estradas estavam cobertas de gelo. Consegui controlar-me para não pedir ao recepcionista que indagasse se o trem de Milão estava atrasado.
Estava lendo a coluna social, que antes me escapara, e me cientificando de que alguém de quem eu nunca ouvira falar tinha dado uma festa para não sei quem, quando uma mulher loura, de seus trinta anos, entrou pela porta seguida por uma quantidade de malas caras. Fiz um esforço para controlar minha respiração. A mulher, notei automaticamente, era bonita, tinha um nariz longo e aristocrático, uma boca fina e bem pintada, e usava um casaco marrom comprido, que mesmo eu, que entendia pouco de roupas, via que estava impecavelmente cortado. Dirigiu-se a passos largos para o balcão da recepção com o ar de quem está acostumada a hotéis de cinco estréias, mas, quando ia dizer seu nome ao funcionário, duas das crianças americanas que tinham ficado no hall romperam numa acalorada discussão sobre quem tomaria banho primeiro, de modo que não pude ouvir o seu nome. "Se alguma vez eu tiver filhos", pensei, "nunca viajarei com eles!"
Fiquei grudado na minha poltrona, enquanto a mulher assinava a ficha e entregava seu passaporte, cuja cor não consegui ver. Depois, em vez de rumar para os elevadores, ela foi diretamente para o bar. Apalpei o dólar de prata que levava no bolso, levantei-me e dirigi-me também para o bar. Mas, quando eu ia entrar, ela saiu. Recuei para deixá-la passar e inclinei ligeiramente a cabeça numa saudação, mas ela nem me ligou, nem eu pude decifrar a expressão em seu rosto.
Sentei-me a um canto e pedi um uísque com soda. O bar estava vazio e às escuras. Não havia nada que eu pudesse fazer, senão esperar.
Ainda estava sentado no bar quando ela voltou, às sete horas. Usava agora um severo vestido preto, com dois fios de pérolas em volta do pescoço, e carregava o casacão marrom. Era evidente que estava planejando sair. Parou à porta e olhou em volta. A família americana estava sentada a uma mesa, o pai e a mãe tomando martínis, as crianças bebendo Coca-Cola e o pai de vez em quando dizendo:
– Pelo amor de Deus, crianças, vocês não vão parar de gritar?
Um idoso casal inglês estava sentado do outro lado do salão, o senhor lendo o Times londrino de três dias antes, a senhora, num vaporoso vestido florido, olhando para o ar.
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