– Acho que não vou poder esquiar com você esta manhã, querido – disse ela. – Bill tem de ir a Zurique hoje e vou acompanhá-lo até a estação. Pobre homem! Com toda esta neve e este dia lindo! – Riu. – E vai ter que pernoitar lá. Não é horrível?
– Horrível – assenti.
– Espero que você não se sinta muito só, esquiando sem mim – disse ela.
– Bem, o que não tem remédio, remediado está – retruquei.
– Na verdade – disse ela -, eu não estava mesmo com vontade de esquiar hoje. Tenho uma idéia! Por que você não vai esquiar agora e, à uma, desce e almoçamos juntos? O trem de Bill sai às vinte para a uma. Podemos passar uma tarde de sonho, juntos…
– Ótima idéia!
– Podemos começar tomando uma bela garrafa de champanha bem gelada no bar – sugeriu ela. – E depois veremos. Não acha boa idéia?
– Ótima – repeti.
Ela deitou-me um dos seus sorrisos significativos e voltou para junto do marido. Eu saí para o ar frio da manhã sentindo um princípio de dor de cabeça. Não tinha nenhuma intenção de esquiar. Se eu nunca mais visse um par de esquis na minha frente, não faria nenhuma diferença. Lamentava ter-me deixado levar pelo que Wales falara do charter do clube de esqui, pois fora o começo da cadeia de acontecimentos que estava levando a Sra. Sloane inexoravelmente para a minha cama. Entretanto, e isso eu tinha de admitir, se tivesse atravessado o oceano num vôo regular e minha mala tivesse sido roubada, eu não teria idéia alguma de onde procurá-la. E através dos Sloane conhecera alguns dos outros companheiros de viagem e pudera lhes falar da minha mala perdida. A verdade era que, até o momento, nenhum deles caíra na armadilha, mas sempre se podia esperar que, na próxima montanha ou no próximo bar alpino, um rosto se erguendo, uma exclamação involuntária ou uma palavra impensada me pusessem na pista da minha fortuna.
Pensei em pegar o mesmo trem que Sloane, mas que poderia eu fazer quando chegássemos a Zurique? Não podia espioná-lo por toda a cidade.
Pensei na tarde de sonho que me esperava, começando por uma bela garrafa de champanha (na minha conta), e gemi. Um rapaz que descia a rua à minha frente, apoiado em muletas, de perna engessada, ouviu-me e voltou-se, curioso. Cada qual com os seus problemas.
Olhei para uma vitrina e vi-me refletido no vidro: um homem jovem, metido numa roupa de esqui elegante, de férias num dos lugares mais glamourosos do mundo. Podiam tirar a minha foto para um anúncio de revista de turismo. As férias dos seus sonhos.
Foi então que ri para mim mesmo. Tive uma idéia. Comecei a descer a rua atrás do rapaz de muletas; quando passei por ele, eu coxeava bastante. Olhou para mim com simpatia e disse:
– Você também?
– Foi só uma distensão – respondi.
Quando cheguei ao pequeno hospital particular, convenientemente situado no centro da cidade, estava imitando bastante bem um esquiador que houvesse sofrido uma queda.
Duas horas depois, eu saía do hospital equipado com muletas, minha perna esquerda engessada acima do joelho. Fiquei o resto da manhã sentado num restaurante, bebendo café e comendo croissants, enquanto lia o Herald Tribune do dia anterior.
O jovem médico que me atendera mostrara-se cético quando eu lhe disse que tinha a certeza de ter quebrado a perna.
– Uma fissura – disse-lhe eu. – Já me aconteceu outras duas vezes. – Ficara ainda mais cético depois de olhar para as radiografias, mas eu insistira e ele dissera:
– Bem, a perna é sua.
A Suíça era um país onde se podia conseguir assistência médica de qualquer tipo, necessária ou não, desde que se pagasse. Tinha ouvido contar de um sujeito com uma infecção no polegar, que ficara obcecado com a idéia de que tinha um câncer. Médicos dos Estados Unidos, da Inglaterra, França, Espanha e Noruega tinham-lhe garantido que se tratava apenas de uma infecção por fungo e prescrito pomadas. Na Suíça, por um determinado preço, ele por fim conseguira que lhe amputassem o dedo. Atualmente, vivia feliz em San Francisco, sem polegar.
À uma hora, peguei um táxi de volta ao Palace. Aceitei as expressões de compaixão dos funcionários do hotel com um sorriso pálido e assumi um ar de sofrimento estóico ao entrar no bar.
Flora Sloane estava sentada a um canto, perto da janela, com uma garrafa de champanha por abrir num balde de gelo diante dela. Vestia uma calça comprida verde, bem justa, e um suéter que realçava ao máximo o seu busto generoso e, devo confessar, bem-feito. O casaco de pele de leopardo estava numa cadeira ao lado e o seu perfume fazia o bar parecer uma floricultura cheia de plantas tropicais exóticas.
Ela abriu a boca ao me ver entrar usando as muletas com dificuldade.
– Ora, bolas! – exclamou.
– Não é nada – disse eu, valentemente. – Apenas uma fraturinha. Daqui a um mês e meio poderei tirar o gesso. Pelo menos, foi isso que o médico falou. – Deixei-me cair numa cadeira, com um som que ouvidos sensíveis teriam distinguido como um gemido abafado, e coloquei a perna engessada numa outra cadeira.
– Como diabo você foi fazer isso? – perguntou ela, aborrecida.
– Meus esquis não se abriram. – Até aí, era verdade. Eu não tocara neles naquele dia. – Cruzei os esquis e eles não se abriram.
– Um bocado estranho – disse ela. – Você não caiu nem uma vez desde que chegou.
– Acho que eu não estava prestando atenção – expliquei. – Acho que estava pensando nesta tarde e…
A expressão dela mudou.
– Pobrezinho! – disse. – Bem, de qualquer maneira, podemos tomar o nosso champanha. – E fez um sinal ao garçom.
– O médico proibiu-me de beber – falei. – Disse que prejudicava o processo de cura.
– Todo mundo que eu conheço que quebrou ossos continuou bebendo – retrucou ela. Não era mulher que gostasse de se ver privada de champanha.
– Talvez – falei. – Mas o médico disse que meus ossos são muito frágeis. – E fiz uma careta de dor.
Ela tocou-me na mão.
– Está doendo?
– Um pouco – confessei. – O efeito da morfina está começando a passar.
– Ainda assim – disse ela -, vamos poder almoçar…
– Detesto ter de desapontá-la, Flora – atalhei. – Mas estou um pouco enjoado. Sinto até vontade de vomitar. O médico disse que era melhor eu ficar hoje de cama, com a perna apoiada numas almofadas. Sinto muito.
– Bem, só posso dizer que você escolheu o dia errado para cair – disse ela, passando a mão no busto vestido de caxemira. – E eu, que me vesti para você.
– Os acidentes acontecem quando têm de acontecer – falei, filosoficamente. – Mas você está linda. – Levantei-me com esforço, apoiando-me num pé só. – Acho melhor subir agora.
– Vou com você – disse ela, erguendo-se.
– Se você não se ofende, preferia ficar sozinho. Desde criança, gosto de estar sozinho quando não estou bem. – Não queria ficar deitado numa cama com Flora Sloane à solta no quarto. – Beba o champanha por nós dois. Por favor, ponha a garrafa na minha conta – disse eu para o garçom.
– Posso ir ao seu quarto mais tarde? – perguntou ela.
– Bem, agora vou procurar dormir. Telefono-lhe quando acordar. Não se preocupe comigo, meu bem.
E saí, deixando-a no bar, esplêndida e desapontada, na sua calça verde e justa e no seu suéter de caxemira.
Quando o sol estava se pondo, num fulgor rosado sobre os picos distantes que se viam da minha janela, a porta do meu quarto abriu-se de mansinho. Estava deitado na cama, olhando confortavelmente para o teto. Tinha mandado servir o almoço no quarto e comera avidamente. Por sorte, o garçom viera apanhar a bandeja, porque a cabeça de Flora Sloane apareceu à porta.
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