– Oh! – exclamou a loura. – Desculpe.
Sorri sombriamente, fazendo um esforço para não coçar o rosto.
– É um prazer – menti.
Ela recompensou-me com um sorriso. Não devia ter mais de vinte e oito anos e tinha todas as razões para achar que um sorriso seu era realmente uma recompensa. Eu tinha certeza de que ela não era a primeira mulher daquele homem, talvez nem mesmo a segunda. Antipatizei com ela logo de saída.
O homem tirou o casaco de pele de carneiro que estava usando e o chapéu tirolês, verde com uma peninha, e atirou-os para cima do porta-bagagens. Em volta do pescoço, tinha uma echarpe de foulard de seda, que não tirou. Sentou-se e apanhou uma caixa de charutos.
– Bill – queixou-se a mulher.
– Estou de férias, meu bem. Deixe-me fumar sossegado. – E abriu a caixa de charutos.
– Espero que o senhor não se incomode que meu marido fume – disse a loura.
– Em absoluto. – Pelo menos, abafaria o horrível perfume.
O homem estendeu-me a caixa de charutos.
– Posso oferecer-lhe um?
– Obrigado. Não fumo – menti.
Ele apanhou uma pequena tesoura e cortou a ponta de um charuto. Tinha mãos grossas, brutais, manicuradas, que combinavam com seu rosto avermelhado, de queixo duro e olhos frios e azuis. Eu não gostaria de trabalhar com um homem assim, ou de ser seu filho. Calculei que tivesse bem mais de quarenta anos.
– Puros havanas – comentou ele. – Quase impossíveis de encontrar na nossa terra. Os suíços, graças a Deus, são neutros em relação a Castro. – Usou um isqueiro de ouro para acender o charuto e reclinou-se no assento, fumando confortavelmente.
Olhei pela janela para o campo coberto de neve. Também tinha pensado que ia gozar umas férias. Pela primeira vez, passou-me pela cabeça que talvez devesse saltar na próxima estação e voltar para casa. Mas para casa, onde? Pensei em Drusack, que não estava indo para St. Moritz.
O trem entrou num túnel e dentro do compartimento ficou escuro como breu. Desejei que o túnel nunca mais acabasse. Sentindo pena de mim mesmo, lembrei-me das noites no St. Augustine e pensei: a escuridão é o meu elemento.
Pouco depois de sairmos do túnel, estávamos em pleno sol. Tínhamos saído da nuvem cinzenta que pairava sobre a planície suíça. O sol era como que uma afronta à minha sensibilidade. O homem agora estava cochilando, a cabeça jogada para trás, o charuto apagado no cinzeiro. A mulher lia os quadrinhos do Herald Tribune, uma expressão de êxtase no rosto. Parecia uma boba, lábios apertados, olhos infantis sob o chapéu de leopardo. Era isso o que eu pensara que o dinheiro me compraria?
Ela percebeu que eu a estava observando e olhou para mim, rindo coquetemente.
– Sou tarada por histórias em quadrinhos – falou. – Tenho sempre medo de que o Rip Kirby seja morto.
Sorri sem vontade e olhei para o solitário no dedo dela, ganho, sem dúvida, em honesto matrimônio. Ela olhou para mim de esguelha. Apostei como nunca olhava para ninguém de frente.
– Será que já não o vi antes? – perguntou.
– Talvez – respondi.
– O senhor, não viajou no avião de quarta-feira à noite? No avião do clube?
– Viajei.
– Sabia que o conhecia de algum lugar. Já esteve em Sun Valley?
– Não. Nunca estive lá.
– Essa é a grande vantagem do esqui – falou ela. – A gente encontra sempre as mesmas pessoas.
O homem resmungou, despertado pelo som de nossas vozes. Acordando, seus olhos encararam-me com hostilidade. Tive a impressão de que a hostilidade era a sua condição natural e básica, e de que o tinha surpreendido antes que ele tivesse tido tempo de afivelar a máscara que usava em sociedade.
– Bill – disse a mulher -, este senhor veio no avião conosco. – Pela maneira com que ela o disse, parecia que tinha sido um enorme prazer para todos nós.
– Ah, sim? – perguntou ele.
– Adoro viajar com americanos – continuou a mulher. – Por causa da língua e de tudo o mais. Os europeus fazem a gente se sentir tão burra! Acho que devíamos comemorar. – Abriu o estojo de jóias, que pousara no assento a seu lado, e dele tirou uma elegante garrafinha de prata. Havia também três pequenos copos de metal, um dentro do outro, que ela distribuiu entre nós. – Espero que o senhor goste do conhaque – disse ela, enchendo cuidadosamente os copos. Minha mão estava tremendo e um pouco de conhaque derramou sobre ela.
– Oh, desculpe – disse a loura.
– Não foi nada – retruquei. Minha mão estava tremendo porque o homem tirara a echarpe de foulard e, pela primeira vez, eu lhe vira a gravata: vermelho-escura e de lã. Ou era uma gravata que eu tinha posto na mala, ou outra exatamente igual. Cruzou as pernas e olhei para os seus sapatos. Não eram novos, mas eram iguais a um par que eu tinha na mala perdida.
– O primeiro brinde é para aquele que primeiro partir uma perna, este ano – disse o homem, erguendo seu copo de metal e rindo brutamente. Eu tinha certeza de que ele nunca partira nada. Era o tipo do homem que nunca estivera doente e que não carregava nada além de aspirina, quando viajava.
Tomei meu conhaque de um só gole. Estava mesmo precisando; e gostei, quando a loura voltou a encher meu copo. Ergui-o galantemente à saúde dela e forcei um sorriso, esperando que o trem descarrilhasse e ela e o marido ficassem esmagados, de modo a que eu pudesse revistá-los, e à bagagem, tranqüilamente.
– Não há dúvida de que vocês sabem viajar – disse eu, num tom de exagerada admiração.
– Estar sempre preparado, em terra estrangeira – sentenciou o homem. – Essa é a nossa divisa. – Estendeu-me a mão. – Meu nome é Bill. Bill Sloane. E a mocinha aí é Flora.
Apertei a mão dele e disse-lhe meu nome. Sua mão era dura e fria. A "mocinha" (que devia ter mais de vinte e cinco) sorriu coquetemente e serviu-me um pouco mais de conhaque.
Quando chegamos a St. Moritz, já parecíamos velhos amigos. Fiquei sabendo que moravam em Greenwich, Connecticut; que o Sr. Sloane era bamba no golfe, empreiteiro e um self-made man; que, como eu tinha imaginado, Flora não era a sua primeira mulher; que ele tinha um filho estudando em Deerfield, o qual, graças a Deus, não usava o cabelo comprido; que votara em Nixon e fora por duas vezes à Casa Branca; que o escândalo Watergate estaria esquecido dali a um mês e os democratas se arrependeriam de tê-lo trazido à baila; que aquela era a terceira vez que eles iam a St. Moritz, que tinham ficado dois dias em Zurique para que Flora pudesse fazer umas compras, e que iam hospedar-se no Palace Hotel.
– Onde você vai ficar, Doug? – perguntou Sloane.
– No Palace – respondi, sem hesitar. Estava muito acima das minhas atuais posses, mas eu não ia perder de vista os meus novos amigos. – Ouvi dizer que é ótimo.
Quando chegamos a St.-Moritz, fiz questão de esperar com eles até que as suas malas fossem desembarcadas do bagageiro. A expressão deles não mudou, quando tirei a mala azul do porta-bagagens.
– Sabe que sua mala está aberta? – perguntou Sloane.
– O fecho está quebrado – respondi.
– É melhor mandar consertá-lo – disse ele. – St. Moritz está cheia de italianos. – Aquele interesse poderia significar algo. Ou nada. Os dois podiam ser os melhores atores do mundo.
Entre os dois, tinham oito malas, todas novas, nenhuma igual à minha. Isso também podia não significar nada. Tivemos que chamar um táxi extra para carregar a bagagem e o carro seguiu-nos, ladeira acima, através das ruas nevadas e movimentadas da cidade, até o hotel.
Este tinha um aroma sutil e indefinível. Um aroma que provinha de dinheiro, dinheiro calmo, sem sobressaltos. O hall era como que uma extensão da caixa-forte do banco, em Nova York. Os hóspedes eram tratados com uma espécie de cautelosa reverência, como se fossem ícones de grande valor, frágeis e dignos de adoração. Tive a sensação de que até mesmo as crianças, lindamente vestidas e acompanhadas de governantas inglesas, que caminhavam comportadamente por sobre os suaves tapetes, sabiam que eu estava fora do meu ambiente.
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