– Não quero perturbá-lo – disse ela. – Só queria saber se você estava precisando de alguma coisa. – Entrou no quarto. Quase não a podia ver na penumbra, mas sentia o cheiro dela. – Como é que você está, querido?
– Vivo – respondi. – Como foi que você entrou? – O fato de estar inválido escusava-me de usar de galanteria.
– A arrumadeira deixou-me entrar. Expliquei e ela me abriu a porta. – Aproximou-se da minha cama e colocou a mão na minha testa, num gesto digno de Florence Nightingale. – Você não tem febre – declarou.
– O médico disse que talvez só à noite – disse eu.
– Passou bem a tarde? – perguntou ela, sentando-se na beira da minha cama.
– Como posso ter passado bem? – retruquei. Só que não era verdade… nunca passara melhor tarde do que aquela, desde que estava em St.Moritz.
De repente, ela inclinou-se e beijou-me, como sempre utilizando a língua. Contorci-me, a fim de poder respirar, e a minha perna doente (como eu agora a considerava) tombou para fora da cama. Gemi de maneira realística. Flora endireitou-se, toda afogueada e ofegante.
– Desculpe – disse ela. – Machuquei-o?
– Não – respondi. – Foi só… você sabe… o movimento brusco.
Ela levantou-se e olhou para mim. Estava demasiado escuro no quarto para eu lhe ver claramente o rosto, mas tive a impressão de que ela começara a desconfiar.
– Sabe? – disse ela. – Uma amiga minha conheceu um jovem esquiando em Gstaad, combinaram encontrar-se à noite e… bem, você sabe, ele partiu a perna às três da tarde, só que isso não impediu nada. Às dez horas da noite, eles estavam na cama.
– Talvez ele fosse mais jovem do que eu – argumentei. – Ou a fratura fosse diferente. Seja como for, a primeira vez… com você… eu gostaria que tudo fosse perfeito.
– É – disse ela, numa voz seca e desconfiada. – Bem, acho melhor eu ir andando. Vai haver uma festa hoje à noite e preciso arrumar-me. – Inclinou-se e beijou-me castamente na testa. – Se você quiser – acrescentou – posso vir aqui depois da festa.
– Não acho que seria boa idéia.
– Talvez não. Bom, durma bem – disse ela, e saiu do quarto.
Recostei-me, olhei mais uma vez para o teto às escuras e pensei no heróico jovem de Gstaad. Mais um dia e vou-me embora daqui, com muletas ou sem elas. Mas Flora Sloane me dera uma idéia. Sem ter a chave do meu quarto, ela conseguira entrar. A arrumadeira…
Nessa noite jantei sozinho, bem tarde. Tinha visto Flora Sloane num espetacular vestido longo, a distância, a caminho da festa com um grupo de pessoas, algumas das quais eu conhecia, outras não, mas todas passíveis de terem depositado os meus setenta mil dólares no banco. Se Flora me vira, não o demonstrara. Demorei jantando e, quando subi, não pedi a chave no balcão. O corredor que levava ao meu quarto estava vazio, mas, após um momento, vi a arrumadeira da noite saindo de um outro quarto. Aproximei-me da porta dos Sloane e chamei a arrumadeira.
– Sinto muito – disse, arrastando-me com as muletas -, mas acho que esqueci a chave. Será que a senhora pode abrir a porta para mim? – Era a primeira vez que a via.
Ela tirou uma chave do bolso do avental e abriu a porta. Agradeci e entrei, fechando a porta atrás de mim. O quarto já fora preparado para a noite e a cama estava aberta, com os dois abajures acesos. O perfume de Flora Sloane enchia o ar. Excetuando-se isso, o quarto era igual a todos os outros. Eu estava nervoso, procurando não fazer barulho. Dirigi-me para o grande armário embutido e abri uma porta. Roupa de mulher. Reconheci vários vestidos e conjuntos de esqui. Abri a outra porta: uma longa fila de ternos e camisas empilhadas. No chão, havia seis pares de sapatos. Os sapatos marrons, que Sloane usara no trem, eram os últimos na fila. Curvei-me com dificuldade e apanhei o pé direito. Depois, sentei-me numa cadeira e tirei o sapato direito. O meu pé esquerdo estava engessado. Tentei enfiar o pé no sapato marrom, mas não consegui. Devia ser dois números menor do que o meu. Fiquei ali sentado, segurando o sapato e olhando para ele, abobalhado. Desperdiçara quase uma semana, tempo precioso e uma pequena fortuna, numa pista falsa. Estava ali sentado, no quarto suavemente iluminado, segurando estupidamente o sapato, quando ouvi o ruído de uma chave girando na fechadura. A porta abriu-se e Bill Sloane, com roupa de viagem e segurando na mão uma maleta, entrou no quarto.
Parou, quando me viu, e deixou cair a maleta, que fez um som abafado sobre o tapete do quarto.
– Que diabos…? – falou, mas não parecia zangado. Não tinha tido tempo de se zangar.
– Olá! – disse eu, bobamente. – Pensei que você estivesse em Zurique.
– Estou vendo. – A voz dele começava a se altear. – Onde diabos está Flora? – E acendeu a luz do teto, como se a mulher pudesse estar escondida nas sombras.
– Foi a uma festa. – Eu não sabia se devia levantar-me ou ficar onde estava. Levantar-me apresentava problemas, com a perna engessada e o pé livre metido apenas numa meia.
– Foi a uma festa – repetiu ele, sombriamente. – E que diabos você está fazendo aqui?
– Esqueci a minha chave – respondi, embora visse que a explicação era muito pouco razoável. – Pedi à arrumadeira para abrir a porta do meu quarto e não reparei…
– O que você está fazendo com meu sapato na mão? – Cada pergunta era como que um arco numa curva ascendente.
Olhei para o sapato como se nunca o tivesse visto.
– Sinceramente, não sei – respondi, deixando-o cair no chão.
– O relógio – disse ele. – O maldito relógio.
Olhei para o relógio automaticamente. Eram dez e dez.
– Sei quem lhe deu esse maldito relógio. – O seu tom de voz era agora francamente ameaçador. – Foi a minha mulher. A cretina da minha mulher.
– Foi… bem… só uma brincadeira. – Nada, na minha vida, me preparara para uma situação daquelas, e percebi com amargura que as minhas improvisações estavam longe de ser brilhantes.
– Todos os anos ela se apaixona por algum idiota professor de esqui e lhe dá um relógio… para começar – disse ele. – Só para começar. Quer dizer que… este ano, você foi eleito. É o ano dos amadores.
– É apenas um relógio, Bill – disse eu.
– Ela é uma vagabunda – afirmou Sloane, avançando para mim. – Este ano, pensei: bem, até que enfim ela anda com alguém em quem eu posso confiar. – Começou a chorar.
– Por favor, Bill – supliquei. – Não chore. Juro que não houve nada. – Desejava poder explicar-lhe que, nos últimos sete dias, não sentira o mínimo desejo sexual.
– Você jura – grunhiu ele, chorando. – Você jura! Todos juram! – Com um movimento surpreendente e rápido, inclinou-se, agarrou o meu braço e puxou-o. – Dê-me de volta esse maldito relógio, seu filho da mãe!
– Naturalmente – respondi, com considerável dignidade. Tirei o relógio do pulso e o entreguei a ele. Sloane ficou um momento olhando-o e depois avançou para a janela, abriu-a e atirou-o. Aproveitei a ocasião para me levantar e me equilibrar nas muletas. Ele deu meia-volta e retornou até junto de mim, tão junto, que eu podia cheirar o uísque em seu hálito.
– Eu devia jogá-lo também pela janela, mas não costumo bater em aleijados – falou, ao mesmo tempo em que dava um pontapé no gesso, não com muita força, mas o bastante para me fazer cambalear. – Não sei que diabos você estava fazendo aqui e nem quero saber. Mas, se não cair fora deste hotel e desta cidade amanhã de manhã, juro que vou mandar expulsá-lo. Juro que vai se arrepender de ter vindo à Suíça. – Curvou-se de novo, pegou o meu sapato e jogou-o pela janela, no mais estranho ato de vingança que eu já vira. Tudo isso chorando. Não havia dúvida de que, apesar das aparências em contrário (passar a manhã telefonando e a tarde jogando bridge), ele tinha uma grande e, para um homem da sua idade e do seu temperamento, incomum paixão pela esposa.
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