— Não, espere — respondi. — Nos mundos alternativos que não sobreviveram ao desastre, não havia uma porção de gente?
Quando foram pelos ares, essas pessoas se congelaram, se vaporizaram, foram comidas por formigas ou o quê?
— Qualquer coisa dessas. Mas, Richard, foram eles que escolheram a destruição do mundo em que viviam! Alguns escolheram passivamente, pois não se importavam. Alguns escolheram isso porque acreditavam que a melhor defesa é o ataque. Alguns escolheram porque se julgaram incapazes de resistir. Um dos meios de se optar por um futuro consiste em crer que ele é inevitável. Quando escolhemos a paz — disse ela, indicando o círculo com as minúsculas árvores —, nós vivemos em paz.
— Haverá um meio de conversar com as pessoas que moram lá, um modo de conversar com nossas formas alternativas quando precisarmos saber o que aprenderam? — perguntou Leslie.
— Você está fazendo isso agora — respondeu Pye com um sorriso.
— Mas como podemos fazê-lo — insistiu Leslie —, sem sairmos pulando de um lugar para outro num hidravião e sem entrarmos numa dimensão diferente e encontrar você, o que só ocorreu porque acertamos com a oportunidade certa em um trilhão?
— O que você quer é um meio de conversar com uma forma alternativa sua que puder imaginar?
— Por favor — pedi.
— Não há nada de misterioso nisso — respondeu ela —, mas funciona. Imagine a forma alternativa que quer encontrar, Richard, faça de conta que pergunta a ele qualquer coisa que desejar saber. Faça de conta que escuta a resposta.
— Parece fácil demais — falei.
— E é. Tente.
De repente, fiquei nervoso.
— Eu? Agora?
— Por que não?
— Devo fechar os olhos?
— Se quiser.
— Nenhum ritual, não é?
— Se o ritual lhe for mais agradável… — admitiu Pye. — Respire fundo, imagine uma porta que se abre para uma sala cheia de luzes multicores, veja a pessoa movendo-se na luz ou numa névoa. Ou esqueça as luzes e a névoa e faça de conta que ouve uma voz. Às vezes é mais fácil para nós ouvir sons que visualizar uma imagem. Ou esqueça luzes ou sons, apenas deixe que o que aquela pessoa sabe invade seu ser. Ou esqueça a intuição e imagine que a próxima pessoa com quem você conversar lhe dará a resposta que procura, e pergunte.
Ou pronuncie uma palavra que seja mágica para você. Imagine o que bem desejar.
Escolhi a imaginação, e uma palavra. De olhos fechados, imaginei que, quando falasse, veria diante de mim uma forma alternativa minha que me diria o que eu precisava saber.
Relaxando, vi cores suaves. Quando eu pronunciar a palavra, verei essa pessoa, pensei. Não há pressa.
As cores passavam, nuvens atrás de meus olhos.
— Unicidade — falei.
Numa fração infinitesimal de segundo pude ver, antes de compreender que o verde era um campo de feno, e o azul era o céu. O homem estava parado ao lado da asa de um antigo biplano estacionado no campo de feno, quase em silhueta contra o sol. Eu não lhe podia ver o rosto, mas a cena era tranqüila como um verão de Iowa, e ouvi sua voz como se ele estivesse sentado conosco ali na beira do lago.
— Todo ato humano é uma metáfora, Richard, antes de ser um ato — falou Pye. — Antes que passe muito tempo, você precisará recorrer a tudo quanto sabe a fim de desmentir as aparências, precisará lembrar-se de que Leslie não está apenas empurrando o manete em seu hidravião interdimensional, passando de um mundo para outro. Você necessita da força dela, Leslie necessita de suas asas. Juntos, vocês voam.
A cena dissipou-se, e abri os olhos, sobressaltado.
— Alguma coisa? — quis saber Leslie.
— Muita! — respondi. — Mas não sei ao certo como usá-lo. — Contei-lhe o que eu tinha visto e ouvido. — Não consigo entender.
— Você vai compreender quando precisar — disse Pye. — Quando você faz isso, quando adquire o conhecimento antes da experiência, nem sempre ele faz sentido de imediato.
Leslie sorriu.
— Nem tudo que temos aprendido por aqui é prático.
Pye retraçou o oito que tinha desenhado na areia.
— Nada é prático até compreendermos. Há certos aspectos de vocês que o cultuariam como a um Deus porque você pilota um Martin Seahawk. Há outros que se você próprio pudesse ver, juraria serem mágicos.
— Como você — falei.
— Como qualquer mágico — respondeu ela —, pareço fazer magia porque você não sabe o quanto treinei! Sou um ponto de consciência que se expressa no desenho, tal como você. E tal como você, nunca nasci e nunca poderei morrer. Até mesmo separar a mim de você implica uma diferença inexistente.
— Tal como você é a mesma pessoa que foi há um segundo ou há uma semana — prosseguiu Pye. — Tal como é a mesma pessoa que será daqui a um instante ou daqui a uma semana, também é a mesma pessoa que você foi há uma vida passada, aquela que é numa vida alternativa, aquela que você será daqui a cem vidas, no que chama de seu futuro.
Pye sacudiu a areia das mãos e levantou-se.
— Preciso ir andando — falou. — Vocês têm mais aventuras juntos, ainda. Não se esqueçam dos pintores e do alvorecer. Não importa o que suceder, independente das aparências, a única realidade é o amor. — Estendeu a mão para Leslie, abraçou-a.
— Querida Pye — disse Leslie. — Como é ruim vê-la ir embora!
— Ir embora? Posso desaparecer, meus queridos, mas jamais posso abandoná-los! Quantos de nós estão aqui, afinal?
— Um só, querida — respondi, despedindo-me dela com um abraço.
Pye riu.
— Por que amo vocês? Porque vocês se lembram… — E com isso, desapareceu.
Leslie e eu ficamos sentados por longo tempo na areia, ao lado do desenho de Pye, traçando o oito que ela riscara, apreciando suas cidadezinhas, as florestas e a história que ela contara.
Por fim, caminhamos até o Growly, enlaçados. Puxei a corda da âncora, ajudei Leslie a subir para a cabine, empurrei o avião para dentro da água e subi a bordo. O Martin balançava devagar, empurrado pela brisa. Liguei o motor.
Quando o motor esquentou, nossa verificação de decolagem estava pronta.
— O que virá a seguir, Leslie?
— É estranho, querido. Quando pousamos aqui e achamos que tínhamos saído do desenho, fiquei tão triste ao pensar que estava tudo terminado! Agora sinto exatamente o contrário. Voltar a ver Pye completou alguma coisa em mim. Aprendemos tantas coisas, e tão depressa! Gostaria de parar, voltar para casa e pensar nessas coisas, entender o que significam…
— Eu também, Leslie!
Olhamos um para o outro por muito tempo, e concordamos sem uma só palavra.
— Certo, querida. Vamos para casa. Só precisamos descobrir como fazer isso.
Levei a mão ao manete e o empurrei. Nada imaginei, nem tentei visualizar coisa alguma. O motor do Growly roncou, e o hidravião saltou para a frente. Por que esse ato simples era tão difícil quando eu não podia ver o manete com os olhos? pensei. Logo eu!
Assim que o Growly levantou da água, o lago desapareceu, e estávamos mais uma vez no ar, sobrevoando todos os possíveis mundos existentes.
Lá embaixo estendiam-se os desenhos, misteriosos como sempre, sem setas apontando direções, nem sinais de espécie alguma. — Tem alguma idéia sobre como chegar lá, Leslie?
— Seguir a intuição, exatamente como temos feito até agora? — perguntou ela.
— A intuição é genérica demais, muito cheia de surpresas — respondi. — Não saímos à procura de Tink e de Mashara… ou de Átila.
Será que a intuição pode levar-nos ao lugar exato no qual estávamos a caminho de Los Angeles?
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