Baixei o leme, apertei o pedal para tomar a direção da praia, e então percebi Leslie prender a respiração.
— Veja! — Apontava para alguma coisa.
Um pouco à frente na extremidade da asa direita, com o bico enfiado na areia, havia um anfíbio Martin.
— Ah! Ah! Mais uma prova — falei. Todo mundo treina aqui.
Realmente, estamos em casa.
Empurrei o manete à frente, e suavemente seguimos na direção do outro hidravião.
Não havia nenhum movimento, nem sinal de vida. Desliguei o motor e completamos em silêncio os poucos metros que faltavam. A proa roçou de leve a areia, a sessenta metros da outra máquina.
Tirei os sapatos e desci. A água chegava a meus tornozelos.
Ajudei Leslie a descer. Depois ergui a proa do avião e puxei-o um pouco mais para a terra.
Leslie caminhou na direção do outro Seahawk, enquanto eu prendia a âncora na areia.
— Olá! — gritou. — Olaf — Não há ninguém? — perguntei, indo ao seu encontro. Leslie não respondeu. Estava parada junto do outro avião, olhando para dentro da cabine.
O avião era gêmeo do Growly, e tinha a mesma pintura de neve e arco-íris que tínhamos criado. O interior da cabine era da mesma cor.
O mesmo tecido, o mesmo carpete no chão. Nada diferia, nem mesmo o vidro quebra-luz e as letras pregadas no painel de instrumentos.
— Coincidência? — perguntou Leslie. — Outro hidravião exatamente igual ao Growly — Esquisito. Muito esquisito. — Toquei a coberta do motor.
Ainda estava quente.
— Ah! Ah!… — comentei, sentindo invadir-me uma sensação esquisita. Peguei Leslie pela mão e voltamos juntos para nosso próprio avião.
No meio do caminho, ela se deteve e virou-se.
— Olhe só para isso! Não há pegada alguma, além das nossas.
Como é que uma pessoa pode pousar, descer do avião, desaparecer e não deixar nenhum vestígio?
Ficamos entre os dois Growlys, perplexos.
— Tem certeza de que estamos em casa? — perguntou Leslie.
— Parece que ainda estamos nos desenhos.
— Uma réplica do lago Healey? — perguntei. — E como é que nós deixamos pegadas, se somos fantasmas?
— Tem razão. E se pousarmos no desenho, teremos de encontrar algum aspecto alternativo de nós próprios — concordou Leslie. Ela ficou em silêncio por um momento, olhando em volta. — Mas talvez haja um motivo para não vermos ninguém aqui.
— Se continuamos no desenho, é um teste. Como parece não haver ninguém por aqui, a lição poderia ser de que estejam mesmo aqui, em alguma outra forma. Não podemos estar separados de nós mesmos.
Nunca estamos sozinhos, a menos que acreditemos nisso.
Um clarão de raio laser de rubi brilhou a três metros, e ali estava nossa alter-ego indiana, de jeans pretos e blusa xadrez.
— Por que eu a amo? Porque você se lembra! — Estendeu os braços para Leslie.
— Pye! — exclamou minha mulher, correndo para abraçá-la.
Naquele lugar, estivéssemos ou não no desenho, não éramos fantasmas, e ao se abraçarem elas tocaram pessoas sólidas.
— Que bom revê-la! — disse Leslie. — Não pode imaginar por onde estivemos! As coisas mais lindas, e as mais feias… Ah, Pye, há tanto para lhe contar, tantas coisas que precisamos saber!
Pye virou-se para mim.
— Que bom você ter voltado! — falei, abraçando-a também. — Por que foi embora tão de repente?
Ela sorriu, caminhou até a beira da água e sentou-se de pernas cruzadas. Bateu na areia, num sinal para que sentássemos ao lado dela.
— Porque eu tinha certeza do que iria acontecer — respondeu.
— Quando se ama alguém e se confia nela, quando se sabe que essa pessoa está pronta para aprender e crescer, a gente a solta. Como vocês poderiam aprender, sentir suas experiências, se soubessem que eu estava junto, como um escudo entre vocês e suas escolhas? Pye virou-se para mim, sorridente. — Isto é mesmo o lago Healey alternativo. O avião é para lazer.
Você me fez lembrar do quanto gosto de voar, e por isso dupliquei seu Growly, fiz uns treinos e procurei achá-los Uma surpresa, não é, pousar de rodas baixadas na água? — Percebeu meu horror e levantou a mão. — Lembrei-me a tempo! Um pouquinho antes de pousar, recorri à perícia do meu aspecto mais versado em hidraviões, e você gritou recolher rodas! Obrigada. — Pye pôs a mão no ombro de Leslie. — Como você foi perspicaz ao notar que não deixei pegadas na areia. Foi para lhe lembrar que deve escolher seu próprio caminho, seguir seu supremo sentido de dever, e não o de outra pessoa. Mas você já sabe disso.
— Ah, Pye, como podemos seguir nosso supremo sentido de dever — disse Leslie —, o que podemos fazer num mundo que…
Conheceu Ivan e Tatiana?
Pye fez um gesto afirmativo.
— Nós os amamos! — exclamou Leslie, com a voz embargada.
— E foram americanos que os mataram! Pye, fomos nós!
— Não foi você, querida. Como pode pensar que seria capaz de matá-los? — Pye levantou o queixo de Leslie, olhou dentro de seus olhos. — Lembre-se, nada no desenho é fortuito, nada é destituído de razão.
— Que possível razão? — repliquei. — Você não estava lá, não sentiu o terror! — A noite em Moscou precipitou-se como que numa catadupa. Era como se tivéssemos assassinado nossa própria família na escuridão.
— O desenho não é cruel — disse ela, suavemente. — É um esquema de todas as possibilidades, de absoluta liberdade de escolha.
— Pye tocou meu joelho. — Richard, o desenho é um livro aberto.
Cada acontecimento é uma palavra, uma oração, parte de uma história sem fim. Cada letra permanece para sempre na página. O que muda é a consciência, e ela escolhe o que ler e o que deixar sem ler. Quando você chega a uma página sobre a guerra nuclear, desespera-se ou aprende o que o texto tem para lhe ensinar? Você morre por ler a página, ou passa para outras páginas, mais sábio?
— Nós não morremos — respondi. — E esperamos que estejamos mais sábios.
— Vocês dividiram uma página com Tatiana e Ivan Kirilov, e ao chegarem ao fim da leitura, a página foi virada. Ela ainda existe, neste exato momento, esperando para mudar o coração de alguém que desejar lê-la. Mas depois de ter aprendido, você não precisa reler a página. Você a passou, e eles também o fizeram.
— Fizeram? — perguntou Leslie, com uma ponta de esperança.
Pye sorriu.
— Linda Albright não lhe lembrou um pouco Tatiana Kirilov?
Por acaso Krysztof não lhe lembrou, de certa forma, seu amigo Ivan?
Os pilotos do aerojogo não transformaram a guerra, que de terror que era passou a ser um entretenimento? Não salvaram o mundo deles da destruição? Quem você pensa que eles são?
— Os mesmos que leram aquela página conosco a respeito de uma noite terrível em Moscou?
— Isso! — concordou Pye.
— E eles são nós, também? — perguntei.
— Isso! — Os olhos de Pye brilharam. — Você e Leslie. Linda e Tatiana e Mashara e Jean-Paul e Átila e Ivan e Atkin e Pye, nós todos, somos uma só pessoa!
Minúsculas ondas batiam na areia, e ouvíamos o murmúrio suave do vento nas árvores.
— A cada vez que vocês pousam no desenho, concentram-se numa página — disse ela. — Há uma razão para eu os ter encontrado, uma razão para vocês terem encontrado Átila. Preocupam-se com a paz e a guerra? Nesse caso, pousam em páginas que lhes proporcionam uma visão melhor da paz e da guerra. Temem que se separem, ou que morram e percam um ao outro? Então pousarão em vidas que lhes ensinarão a respeito de separação e de morte, e aquilo que aprenderem mudará o mundo à volta de vocês para sempre. Amam o planeta e receiam que a humanidade o esteja destruindo? Escolhem ver o pior e o melhor do que pode acontecer, aprendem que tudo depende da escolha individual de vocês.
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