— Está afirmando que criamos nossa própria realidade? — perguntei. — Sei que se diz isso com freqüência, mas…
Pye riu, e apontou o horizonte a leste.
— É madrugada bem cedo — disse, com a voz ganhando subitamente um tom misterioso. — Escuridão. Estamos numa praia como esta. O primeiro sinal do alvorecer. Frio.
Estávamos a seu lado, no frio e na escuridão com ela, vivendo a história que narrava.
— Diante de nós está o cavalete e a tela, e temos nas mãos as tintas e os pincéis. — Diante daqueles olhos escuros, sentíamo-nos como que hipnotizados. Eu sentia a paleta na mão esquerda, os pincéis na direita, pincéis com ásperos cabos de madeira.
— Agora a luz aumenta no céu, vêem? — perguntou. — O céu está se transformando em fogo, caí um manto de ouro, prismas de gelo fundem-se em tons escarlates, convertem-se no nascer do sol…
Estonteados, víamos as cores.
— Pintem! — disse Pye. — Captem esse alvorecer em suas telas! Absorvam essa luz através de seus olhos, transportem-na para a tela! Depressa, agora, depressa! Vivam a madrugada com seus pincéis!
Não sou pintor, mas em minha mente eu sentia aquele ímpeto maravilhoso, transformado em pinceladas ousadas na tela. Imaginava o cavalete de Leslie, via sua própria aurora, de magnífica delicadeza, raios cuidadosos mesclados a uma explosão de cor.
— Pronto? — perguntou Pye. — Guardaram os pincéis?
Assentimos com um gesto.
— O que criaram?
Eu devia ter pintado nossa mestra, aquele momento.
— Duas auroras muito diferentes — falou Leslie.
— Não são duas auroras — retrucou Pye. — São duas pinturas!
O artista não cria a aurora, cria…
— Ah, sim, é claro! — exclamou Leslie. — O artista cria a pintura!
Pye concordou.
— A aurora é a realidade, a pintura é a maneira como a representamos? — perguntei.
— Exatamente! — concordou Pye, — Se cada um de nós precisasse criar nossa própria realidade, pode imaginar o caos tedioso que resultaria? A realidade ficaria limitada àquilo que cada um de nós conseguisse inventar!
Concordei com a cabeça. Como criar a aurora se eu nunca a tivesse visto? O que fazer com um negro céu noturno para começar o dia? Por acaso eu teria imaginado um céu? Ou o dia e a noite?
— A realidade nada tem a ver com nossa estreita maneira de ver — continuou Pye. — A realidade é o amor expressado, o amor puro e perfeito, intocado pelo espaço e pelo tempo.
— Já se sentiram assim, em uníssono com o mundo, com o universo, com tudo que existe, z um grau tal que são invadidos pelo amor?
— Pye olhou para Leslie e para mim. — Isso é a realidade. Isso é a verdade. O que fazemos dela compete a nós, tal como a pintura da aurora compete ao artista. No mundo de vocês, a humanidade afastou-se desse amor. Ela vive o ódio, lutas pelo poder. Continuem, e ninguém verá a aurora. O alvorecer sempre existirá, naturalmente, mas as pessoas nada saberão a seu respeito, e por fim até a lembrança de sua beleza desaparecerá.
Ah, Mashara, pensei, porventura seu passado será nosso futuro?
— Como podemos levar o amor a nosso mundo? — perguntou Leslie. — Há tantas… ameaças, tantos Atilas.
Pye deteve-se por um momento, à procura de uma história que pudesse elucidar a questão. Por fim, desenhou na areia um pequeno quadrado.
— Digamos que vivemos num lugar terrível, a Cidade das Ameaças — disse, tocando o quadrado. — Quanto mais permanecemos ali, menos gostamos do lugar. Há violência, destruição, não gostamos das pessoas, não apreciamos suas escolhas, não temos nada a ver com o lugar. A Cidade das Ameaças não é o nosso lar! — Traçou uma linha ondulada que, saindo do quadrado, descrevia volteios sem fim. Na extremidade dessa linha, desenhou um círculo. — Por tudo isso, um dia arrumamos nossas coisas e vamos embora, à procura da Cidade da Paz. — Acompanhou com o dedo todas as curvas e voltas da estrada serpenteante. — Seguimos para a esquerda e para a direita, tomamos estradas largas e atalhos, acompanhamos o mapa de nossas maiores esperanças, e por fim chegamos aqui, a essa cidadezinha tão agradável.
Paz era o círculo na areia, e foi ali que parou o dedo de Pye.
Enquanto falava, fincava na areia gravetinhos verdes, simulando árvores.
— Conseguimos uma casa em Paz e, à medida que começamos a conhecer as pessoas, percebemos que elas têm os mesmos valores que nos trouxeram para cá. Cada qual descobriu sua própria estrada, seguiu seu próprio mapa, vindo de onde estava para esse lugar onde não se imagina a destruição, onde as pessoas escolheram o amor, a alegria e a bondade… que canalizam para o próximo, para a cidade, para o próprio mundo. — Encarou-nos quase acanhada. — As pessoas de Paz aprenderam que o ódio é o amor sem os fatos. Por que dizermos mentiras que nos separam e nos destroem quando a verdade é que somos uma só pessoa? Quem mora na Cidade das Ameaças está livre para escolher a destruição, mas nós preferimos a Paz. Ouvíamos sua explicação atentos.
— Com o tempo — continuou ela —, os habitantes da Cidade das Ameaças talvez se cansem da violência, talvez sigam seus próprios mapas para Paz, façam a mesma escolha que fizemos: deixar para trás a destruição. Se todos tomarem essa decisão, a Cidade das Ameaças se transformará numa cidade fantasma. — Traçou um oito no chão, uma suave estrada entre Paz e a Cidade das Ameaças. — E um dia, os habitantes de Paz, curiosos, visitam as ruínas da Cidade das Ameaças e descobrem que, tendo os destruidores saído dali, a realidade mais uma vez se tornou visível: correntes frescas em vez de venenosas, exuberantes florestas novas que brotam de clareiras e minas a céu aberto, o gorjeio de aves no ar puro. — Pye plantou outros gravetinhos na Cidade das Ameaças. — E os habitantes de Paz retiram a tabuleta pendurada na entrada da cidade, a tabuleta que diz “Cidade das Ameaças”, e a substituem por outra: “Bem-Vindos a Amor.” E alguns retornam para remover os escombros, reconstruir as ruas feias, e prometem que a cidade fará jus a seu novo nome. Escolhas, meus queridos, estão vendo? Tudo se resume a escolhas.
Naquele momento, naquele local estranho, o que ela dizia fazia sentido.
— O que vocês podem fazer? — perguntou. — Na maior parte dos mundos, o que faz as coisas mudarem não são milagres repentinos.
A mudança vem com o lançamento de um frágil e trêmulo fio entre países: os primeiros aerojogos amadores no mundo de Linda Albright, os primeiros bailarinos, cantores ou filmes soviéticos exibidos a platéias americanas no mundo de vocês. Lentamente, lentamente, não deixem de escolher a vida.
— Por que não da noite para o dia? — perguntei. — Não há nada que diga que é impossível uma coisa mudar depressa.
— É claro que uma mudança rápida é possível, Richard — respondeu Pye. — As mudanças ocorrem a cada segundo, independente de nossa percepção. No desenho, as mudanças iá estão feitas. Seu mundo, com seu primeiro fio de esperança de um futuro pacífico, é tão verdadeiro quanto seu mundo alternativo que acabou em 1962, quanto o primeiro dia da última guerra. Diferentes passados, futuros diferentes. Cada um de nós escolhe o destino de nosso mundo.
As mentes devem mudar antes dos acontecimentos.
— Então, o que falei ao tenente é verdade! — exclamei. — Um de meus futuros em 1962 era que os soviéticos não retrocederam.
Muitos de nós pensávamos que isso era inevitável. E comecei uma guerra nuclear.
— Claro. O desenho apresenta milhares de caminhos que acabam num determinado fim naquele ano, milhares de Richards alternativos que escolheram experiências de morte. Você não fez essa escolha.
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