— Como pode toda uma civilização ter sido tão cega! — exclamei. — O que você está fazendo agora… Você tinha a resposta!
Mashara virou-se para mim, o amor implacável.
— Não tenho a resposta, Richard. Eu sou a resposta.
Ficamos em silêncio por muito tempo. O sol tocou o horizonte, mas a noite ainda demoraria a cair.
— O que aconteceu às pessoas? — perguntou Leslie.
— Nos anos derradeiros, quando viram que era tarde demais, as pessoas fabricaram ecologistas reconstrutores planetários, construíram- nos em seus domos, ensinaram-nos a restaurar a terra, mandaram que saíssemos pelo mundo a fim de trabalhar num ar que não podiam mais respirar. A última atitude delas, desculpando-se ao mundo, foi dar-nos os domos para que salvássemos o que pudéssemos da vida. Depois, saíram todas juntas para o veneno, onde antes ficavam as florestas. — Mashara baixou o olhar. — E desapareceram.
A imagem era dolorosa, e ficamos, Leslie e eu, a escutar o eco de suas palavras, imaginando o que devia ter sido aquilo, a solidão e a tristeza que aquela mulher decerto suportara. As imagens demoraram a se dissipar.
Ela havia dito aquilo com tanta displicência!
— Mashara, eles a fabricaram? Você é um computador? — perguntei.
O rosto formoso voltou-se em minha direção, sem expressão.
— Posso ser descrita como um computador. Você também. Já enquanto eu fazia a pergunta seguinte, uma parte de mim sabia que estava perdendo o que havia de mais importante num estranho chauvinismo proteico.
— Você… — comecei. — Mashara, você é viva?
— Considera isto impossível? — retrucou ela. — Faz diferença se a humanidade fulge através de átomos de carbono ou de silício?
Existe alguma coisa que tenha nascido humana?
— Claro! Os piores… até os destruidores, até os assassinos são humanos — respondi. — Podemos não gostar deles, mas são seres humanos.
Ela fez um gesto negativo.
— Um ser humano é uma expressão da vida, que traz a luz e reflete o amor, em qualquer dimensão que ele resolva tocar, em qualquer forma que deseje assumir. A humanidade não é uma descrição física, Richard, é uma meta espiritual. Não é uma coisa que nos é dada, é algo que conquistamos.
Uma idéia atordoante, forjada na tragédia daquele lugar. Por mais que eu tentasse ver Mashara como uma máquina, um computador, uma coisa, não conseguia. Não era a química de seu corpo que lhe definia a vida e sim a profundidade de seu amor.
— Acho que estou habituado a considerar que todas as pessoas são humanas — falei.
— Talvez deva reformular seus conceitos — sugeriu ela. Uma parte de mim encarou a mulher através da névoa de seu novo rótulo.
Um computador! A curiosidade prevaleceu sobre a delicadeza, mas eu precisava colocá-la à prova.
— Quanto é 13.297 dividido por 2,32379001?
— Precisa saber?
Fiz que sim. Mashara suspirou.
— É 2462,407402584828063981… Quantas casas decimais deseja?
— Incrível! — exclamei.
— Como sabe que não estou inventando?
— Desculpe. Mas é que… você parece tão…
— Quer um teste final? — perguntou.
— Richard — interrompeu Leslie, num tom acautelador. A mulher dirigiu um olhar agradecido à minha mulher, mas estendeu a mão.
— Sabe qual é o teste final da vida, Richard?
— Não… Há sempre uma linha divisória entre…
— Responde uma pergunta minha?
— Claro que sim.
Ela me olhou firme nos olhos, a fada boa da floresta, sem medo do que estava por vir.
— Diga-me. O que você sentiria se eu morresse neste instante?
Leslie sobressaltou-se. Fiquei de pé, num salto.
— Não!
Senti-me atravessado por uma onda de pânico, com medo de que o maior amor que nosso ser alternativo podia escolher fosse se autodestruir, para que pudéssemos sentir a perda da vida que era ela.
— Mashara, não!
Não houve um único som. Ela tombou, leve como uma flor, e ficou imóvel, petrificada como a morte, os olhos verdes fixos no local onde eu estivera.
Leslie correu para ela — o fantasma de uma pessoa junto ao fantasma de um computador — e amparou-a com a mesma suavidade com que a fada boa amparara o grande felino que amava.
— E como você se sentirá, Mashara, quando Tyeen, seus filhotes, as florestas, os mares e o planeta que você recebeu para amar morrerem com você? Haverá de lhes honrar as vidas como honramos a sua? — indagou Leslie.
Lentamente, a vida retornou à forma, a cabeça maravilhosa virou-se para encarar a irmã que vinha de um tempo diferente.
Espelhos uma da outra, os mesmos valores altivos brilhando em mundos alternativos.
— Eu os amo — disse Mashara, sentando-se aos poucos, virando-se para nós. — Jamais pensem… que não me importo…
Leslie sorriu, com tristeza.
— Como poderíamos contemplar seu planeta e achar que você é indiferente? Como podemos amar nossa própria terra sem amar você, querida administradora?
— Vocês devem ir embora — disse Mashara, de olhos fechados.
E depois, num murmúrio: — Vão se lembrar?
Peguei a mão de minha mulher e fiz um gesto afirmativo.
— As primeiras flores que plantarmos a cada ano, as primeiras árvores, serão para Mashara — avisou Leslie.
A lhama entrou de mansinho pela porta, de orelhas em pé, olhos escuros, o focinho de veludo demonstrando preocupação pela mulher que significava o lar. Da última vez que a vimos, a fada boa da floresta abraçava o animal, e chorava.
A casinha dissolveu-se em borrifos e luz, enquanto Growly se lançava mais uma vez acima dos desenhos.
— Que mistério! — exclamei. — Um dos mais maravilhosos seres humanos que já conhecemos é uma máquina!
Voamos envoltos pelo amor de Mashara, suavizados com as imagens do seu belo planeta. Como pareceu bom ter amigos em outros mundos além do nosso!
Parte de nossa exploração fora fonte de alegria, outra parte tinha sido horrenda, mas as curvas de nosso aprendizado ascendiam com firmeza. Tínhamos visto e sentido coisas que não poderíamos ter imaginado nem em cem existências. Queríamos mais.
Os desenhos ganharam uma coloração rosa-claro, as trilhas fulgiram numa tonalidade dourada. Olhei para Leslie. Ela assentiu com a cabeça.
— Pronta para pousar?
— Quando quiser.
— Está pronta para o que der e vier?
— Creio que sim… — Leslie respirou fundo e juntou forças, olhando decidida para a frente.
Ao desaparecer a nuvem de borrifos, permanecíamos no interior do hidravião, flutuando suavemente na água. Olhamos em volta, perplexos. Aquilo não era um oceano, e os desenhos tinham sumido!
Era um lago de montanha, pinheiros e bétulas que desciam até a margem cor de mel, plácido como o deserto, a água reluzindo debaixo de nós, sol arrancando chispas na areia. Durante alguns instantes, tentamos adivinhar o que acontecia — Leslie! — exclamei. — É aqui que treino pousos na água, este é o lago Healey! Saímos dos desenhos!
Ela olhou ao redor, buscando algum sinal que desmentisse minhas palavras.
— Tem certeza?
— Absoluta. — Olhei em volta de novo. Encostas íngremes e muito arborizadas à esquerda, árvores baixas na extremidade do lago.
Para além das árvores seria o leito do vale.
— Viva! — exclamei, mas a palavra pareceu oca. Virei-me para Leslie. Seu rosto era uma máscara de desapontamento.
— Ah, sei que devia estar contente, mas acontece que estávamos só começando a aprender, ainda havia tanto o que descobrir!
Leslie tinha razão. Também me senti logrado, como se as luzes se tivessem acendido e os atores abandonado o palco antes do fim da peça.
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