Tempos duros, tempos bons, falou Leslie com os olhos.
Tampouco eu os trocaria por coisa alguma.
— Vamos tirar umas longas férias quando voltarmos — propus, ganhando uma nova perspectiva com a observação daquele casal no fim do caminho.
Ela concordou.
— Vamos reformular nossas vidas.
— Sabe o que estou pensando, Davey, meu amor? — perguntou Lorraine, com um sorriso triste.
Ele pigarreou e sorriu também.
— Nunca sei o que você está pensando.
— Acho que devemos pegar este guardanapo aqui — disse ela, metendo a mão na bolsa — e este lápis, e relacionar o que mais queremos fazer e transformar esses seis meses nos melhores de nossa vida. O que iríamos fazer se não houvesse médicos para controlar-nos?
Já que eles admitem que não podem curar você, com que direito vêm nos dizer o que devemos fazer com o tempo que nos resta? Sugiro que façamos essa lista e depois aproveitemos o tempo.
— Você é doida mesmo.
— Aulas de vôo, finalmente… — começou ela a relacionar.
— Ora, pare com isso, querida.
— Foi você mesmo quem disse que poderia fazer tudo o que esse sujeito fez — disse ela, apontando o livro. — É só para nos divertirmos. Vamos. O que mais?
— Bem, sempre tive vontade de viajar, ir à Europa, talvez, e já que estamos sonhando…
— À Europa, mas onde? Algum lugar em especial?
— Itália — sugeriu ele, como se expressasse um desejo secreto.
Ela arqueou as sobrancelhas e anotou a sugestão do marido.
— E antes de irmos, eu gostaria de aprender um pouco de italiano, para podermos conversar com as pessoas lá.
A mulher levantou o olhar, surpresa, detendo o lápis no ar por um instante.
— Vamos comprar uns livros de italiano — disse, escrevendo.
— Há também aulas em cassetes. — Olhou para ele. — O que mais?
A lista é de tudo que você quiser.
— Ah, não temos tempo. Devíamos ter feito isso…
— Devíamos, uma pinóia — retrucou ela. — Não faz sentido ficarmos com saudade de um passado que não podemos recuperar. Por que não desejarmos coisas que ainda podemos fazer?
Ele pensou nisso por um momento, e sua expressão melancólica logo desapareceu. Foi como se ela lhe tivesse insuflado vida nova.
— Isso mesmo! Está na hora! Acrescente aí: surfar!
— Surfar? — admirou-se ela, arregalando os olhos.
— O que o médico dirá sobre isso? — perguntou ele, com um brilho travesso no olhar.
— Vai dizer que não é saudável — respondeu ela, rindo. E anotou no guardanapo. — O que mais?
Leslie e eu rimos um para o outro.
— Eles podem não nos ter ensinado a voltar para casa, mas nos mostraram o que devemos fazer quando chegarmos lá — comentei.
Leslie assentiu com a cabeça, empurrou o manete invisível para a frente e o bar sumiu num turbilhão.
De volta ao ar, pusemo-nos à procura de alguma pista que o desenho pudesse oferecer, qualquer sinal que mostrasse uma maneira de voltar para casa. As trilhas seguiam todas as direções ao mesmo tempo.
— Será que vamos passar o resto da vida entrando e saindo da intimidade das pessoas, em busca de nós próprios? — perguntou Leslie.
— Não, meu amor, já vamos sair daqui — menti. — Tem de haver uma saída! Basta termos paciência para esperarmos até encontrar a chave, seja qual for.
Ela olhou para mim.
— Neste exato momento, você está bem mais seguro de si do que eu. Por que não escolhe um local para tentarmos?
— Intuição, uma última vez? — concordei.
— Assim que fechei os olhos, percebi para onde devíamos ir.
— Siga em frente! Prepare-se para o pouso.
Ele estava sozinho, jogado na cama de um quarto de hotel. Meu gêmeo, um gêmeo idêntico, apoiado num cotovelo, olhando pelas janelas abertas. Não podíamos estar longe de casa.
As altas portas de vidro emolduravam uma sacada que dava para um campo de golfe, ladeado por densos arvoredos. Nuvens baixas, um contínuo tamborilar de chuva no telhado. Ou era fim de tarde, ou as nuvens estavam tão pesadas e escuras que o dia se convertera em crepúsculo.
Nós nos achávamos numa sacada semelhante, do outro lado do quarto, olhando através de portas de vidro, abertas.
— Tenho a impressão de que ele está numa profunda depressão, não acha? — murmurou Leslie.
Concordei com a cabeça.
— É estranho ele estar deitado ali, sem fazer nada. Onde está Leslie?
Ela balançou a cabeça, olhando para o homem, preocupada.
— Eu me sinto um pouco… constrangida nessa situação — falou. — Acho que você deve conversar com ele, a sós.
O homem se mantinha imóvel, mas não estava dormindo.
— Vá lá, amor — insistiu Leslie. — Fale com ele. Acho que precisa da sua ajuda.
Apertei-lhe a mão e entrei no quarto, sozinho.
Ele olhava para o céu cor de chumbo, e mal virou a cabeça quando surgi. Ao lado dele, sobre a colcha, havia um computador. A luzinha indicava que estava ligado, mas a tela nada mostrava.
— Olá, Richard — cumprimentei-o. — Não se assuste. Eu sou..
— Eu sei — suspirou ele. — A projeção de uma mente perturbada. — Virou os olhos de novo para a chuva.
Pensei numa árvore, atingida por um raio e derrubada ali sem poder se mexer.
— O que aconteceu? — perguntei. Não houve resposta.
— Por que está tão deprimido?
— Não deu certo. Não sei o que aconteceu — respondeu ele.
— Ela me deixou.
— Leslie? Deixou você?
O vulto na cama fez um vago gesto de assentimento.
— Bem, ela avisou que se eu não saísse de casa, ela sairia, pois não me suportava mais. Pode ter sido eu quem se distanciou, mas foi ela quem largou o casamento.
Impossível, pensei. O que seria capaz de fazer uma Leslie alternativa dizer que não o suportava mais? Havíamos atravessado tantos períodos difíceis juntos, minha Leslie e eu, anos de luta, desesperadas tentativas de nos salvarmos da falência, épocas em que nos sentíamos tão cansados que queríamos desistir, tão pressionados que havíamos perdido a perspectiva e a paciência, épocas em que havíamos discutido. Mas nunca tinha sido sério, jamais nos separáramos, nunca alguém dissera: se você não sair, saio eu. Eu não conseguia imaginar uma coisa daquelas! O que poderia ter acontecido na vida deles, que fora muito pior que aquilo que nos sucedera?
— Ela se recusa a falar comigo. — A voz estava tão abatida quanto ele. — Falo uma frase, e ela desliga.
— Afinal de contas, o que você fez? Deu para beber ou viciou-se em drogas? Você..
— Não seja burro! — respondeu, irritado. — Eu sou eu¥ — Fechou os olhos. — Vá embora. Deixe-me em paz.
— Desculpe-me. Foi bobagem minha. É que estou atônito. Não consigo imaginar o que possa ter separado vocês dois. Só pode ter sido uma coisa monumental!
— Não! Coisinhas, foi tudo coisinhas pequenas! Há uma montanha de trabalho por ser feito… impostos, contabilidade, filmes, livros e mil solicitações que vêm do mundo inteiro. Tudo precisava ser feito, e direito, de acordo com ela. Há anos ela me prometeu que minha vida nunca mais seria a balbúrdia que era antes de ela me conhecer. E falava sério. — Ele continuou a falar, satisfeito por poder conversar com alguém, mesmo que fosse a projeção de sua própria mente. — Não tenho cabeça para detalhes, nunca tive, e ela se incumbe de fazer tudo, manipulando três computadores com uma das mãos e duzentos formulários, especificações e prazos com a outra. Ela há de cumprir aquela promessa mesmo que tenha de se matar, está entendendo?
Eu ouvia em silêncio.
Ele estava ressentido, amargurado.
— Ela não tem tempo para mim, não tem tempo para outra coisa a não ser o trabalho. Não posso ajudá-la porque não sei fazer nada direito. Fiz tanta bagunça antes que ela morre de medo de eu voltar a fazer a mesma coisa.
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