— Agora que de repente percebi a verdade, não vou precisar de fazer essas perguntas. Eu mudei, lembre-se. Isso significa que estou me comportando de maneira diferente. Isso significa que me ocuparei em fazê-la feliz, serei um verdadeiro companheiro, dividirei a carga. E quando ela está feliz… — Sorriu, lembrando-se. — Ah, você não faz idéia!
— Imprestáveis sem consideração não se transformam em anjos da noite para o dia. Por que ela haveria de acreditar nessa sua mudança?
No entanto, eu podia ver a mudança. Não mais abatido e inerte, ele estava sentada de pernas cruzadas na cama, escutando, pensando, participando de nossa conversa, cheio de esperança.
— Você tem razão. Não há nenhum motivo para ela acreditar na minha mudança. Ela poderá levar dias para perceber, ou meses, ou pode não perceber nunca. Talvez nunca mais queira me ver. — Parou de pensar nisso, por um momento entristeceu-se de novo, depois olhou para mim. — A verdade é que minha mudança diz respeito a mim. O que Leslie notar ou o que sentir diz respeito a ela.
— Se ela não quiser conversar com você, como vai dizer-lhe o que lhe aconteceu?
— Não sei. Precisarei descobrir uma maneira. Talvez ela perceba por minha voz. — Estendeu a mão para o telefone e discou um número. — Vamos descobrir.
Era como se eu já tivesse desaparecido, tão absorto ele estava no telefonema, tão impregnado de um futuro que quase tinha perdido.
— Alô, meu amor, se quiser desligar, vou entender. — Mas aprendi uma coisa que acho que você vai querer saber. — Fez uma pausa momentânea, e continuou. — Não, você tem razão, não é esse o problema. O problema sou eu. Sou eu que preciso mudar, e já mudei!
Estive errado, fui egoísta e injusto com você, e não posso esperar para lhe dizer como estou arrependido! — Fez nova pausa. — Isso mesmo, arrependido de verdade! Eu a amo com todo meu coração e quero ajudar a fazer com que a vida se torne bonita para nós outra vez… e…
estou pensando se você teria tempo para um encontro com seu marido antes de nunca mais voltar a vê-lo.
Enquanto ele falava, esgueirei-me para o balcão e beijei minha Leslie. Apertamo-nos um contra o outro, tão felizes por estarmos juntos, tão contentes por sermos nós!
— Eles ficarão juntos? — perguntei. — Pode alguém fazer, dessa maneira, muitas mudanças tão radicais?
— Assim espero, querido. Acredito nele porque não se defendeu. Ele procurou se modificar!
— Sempre imaginei que os companheiros ideais têm um amor incondicional, desse que nada pode separar.
— Incondicional? — indagou. — Se eu for cruel e detestável sem razão, e se o ofender você continuará a me amar? Se o enganar, se for para a cama com o primeiro homem que passar pela rua, se arriscar sem hesitar nosso último centavo e chegar em casa embriagada, apesar disso tudo, você me trataria com carinho?
— Quando você propõe esse caminho, talvez meu amor pudesse vacilar. O mais nós somos ameaçados, eu penso, o menos nos amamos. Interessante, para se amar alguém de modo incondicional, não se deve importar-se com o que ele é ou o que tem!
— Também penso assim — concordou Leslie.
— Então me ame condicionalmente, por favor. Me ame quando eu for a melhor pessoa, acalme-se se eu for desatencioso e enfadonho.
— Eu o amarei. Aja da mesma forma, por favor. Olhamos para dentro do quarto mais uma vez e vimos o outro Richard ainda ao telefone. Sorrimos, cupidos triunfantes.
— Por que não tenta a decolagem desta vez? — sussurrou Leslie. — Faz muito tempo que você não tenta, e devia ter certeza de ser capaz disso, antes de voltarmos para casa.
Olhei para ela, estendi a mão, naquele instante de lucidez, na direção de nosso manete invisível, visualizei-o debaixo de minha mão e o empurrei para a frente.
Nada. Não houve nenhum ondular de montanhas ou árvores, o mundo à nossa volta não estremeceu.
— Ah, Richie, é fácil — disse Leslie, ainda sorrindo. — Basta focalizar no sentido vertical.
Antes que eu lhe pudesse pedir que explicitasse o procedimento, passo a passo, antes que eu tentasse de novo, veio aquele conhecido zumbido trêmulo, com o universo se tornando indistinto ao passar de uma para outra dimensão. Leslie já empurrara o manete para a frente.
— Deixe-me tentar outra vez — falei.
— Certo, amor. Vou puxá-lo para trás. Vamos parar, para você tentar outra vez. É só focalizar…
Naquele exato instante, ganhamos o ar, com o mar sob nós. No momento em que ela fez retroceder o manete, o motor engasgou, tossiu e logo foi tarde demais.
O Martin subiu um pouco, e a seguir embicou para a água.
Eu sabia que seria uma violenta amerissagem. O que não esperava era o estrondo, a explosão de uma bomba de 45 quilogramas dentro da carlinga.
Uma força monstruosa arrebentou meu cinto de segurança como se fosse um barbante, atirando-me para fora, através do vidro, e fui cair de cara na água, dura como pedra. Quando emergi, arquejante, lá estava o Martin de cabeça para baixo, a 15 metros de distância, com a cauda para o ar, soltando uma nuvem de vapor do motor quente e submerso.
Não! pensei. Não! Não! Mergulhei na direção do avião, nosso belo e reluzente Growly branco, meio indistinto debaixo da água, mergulhei na direção da cabine despedaçada e que afundava.
Suportando a pressão nos ouvidos, agarrando-me à fuselagem despedaçada, arranquei fora o que restava da capota, soltei o cinto de Leslie. Seu corpo estava inerte e mole. O vestido branco flutuava etereamente em volta dela, os cabelos dourados boiavam languidamente. Tirei-a da carlinga e comecei a subir para a superfície opaca, tão distante de nós agora. Ela está morta. Não, não, não.
Tomara que eu morra, que meus pulmões arrebentem, quero me afogar!
Uma mentira me impelia a continuar: Você não tem certeza de que está morta, você precisa tentar.
Está morta.
Você precisa tentar!
Uma chance em mil. Ao chegar à superfície, eu estava esgotado.
— Está tudo bem, amor — arquejei. — Vamos conseguir… Um barco de pesca, com dois enormes motores de popa, quase passou por cima de nós. Um imenso costado a toda velocidade, sufocando-nos em espuma. Um homem saltou ao mar, através da cortina de água, puxando uma corda de segurança. Dentro da água há não mais de dez segundos, ele gritou: — Peguem os dois! Puxem!
Eu não era um fantasma, nem estava num sonho. Aquilo era uma pedra de verdade, dura como gelo contra meu rosto. Eu não estava assistindo impessoalmente a uma cena, eu era a cena, e não havia ninguém mais para assistir.
Eu estava deitado sobre a sepultura dela, na encosta que ela havia plantado com flores, e soluçava. Debaixo de mim, grama fria. Na lápide em que eu encostava o rosto, uma única palavra: Leslie.
O vento de outono, eu não o sentia. Em minha terra, e em meu próprio tempo, nada me importava. Completamente sozinho e abandonado, três meses após o acidente, ainda me encontrava estupefato. Era como se uma cortina de palco, de trinta metros, houvesse caído sobre mim, cheia de pesos, sufocando-me, prendendo-me, asfixiando-me numa sensação de perda e aflição.
Nunca havia tomado consciência da coragem necessária a uma pessoa para não se matar quando morre a esposa, o marido! Mais coragem do que eu tinha. Ela exigia o cumprimento de todas as promessas que eu havia feito a Leslie.
Quantas vezes havíamos feito planos. Morrer juntos.
Independente do que acontecer, vamos morrer juntos.
— Mas no caso de isso não suceder — advertira-me ela —, se eu morrer primeiro, você deve ir em frente. Prometa!
— Prometo, se você prometer…
— Não! Se você morrer, não terá sentido eu continuar viva.
Читать дальше