Não sei nem mesmo o que aconteceu!
— Houve uma razão para aquilo, Leslie.
— Bem, não sei qual foi essa razão, e se soubesse, não ligaria para ela. Não posso largá-lo!
— Já pensou que talvez ele precise aprender alguma coisa que jamais aprenderia se você estivesse com ele? Uma coisa importante?
Sacudi a cabeça.
— Nada é tão importante. Se fosse, teríamos nos separado antes.
— Vocês estão separados agora.
— Não! Não aceito isso!
Naquele momento, vi o rapazinho encaminhando-se em nossa direção, as mãos nos bolsos, e de cabeça baixa. Era alto e magro, de um acanhamento que eu percebia até em seu andar.
Eu não conseguia desviar os olhos, mas vê-lo me dilacerava de tal forma o coração que era quase insuportável.
Nesse momento ele levantou a cabeça, e aqueles travessos olhos negros brilharam de novo, depois de tantos anos.
Ronnie!
Meu irmão e eu tínhamos sido inseparáveis na infância, e agora nos agarrávamos um ao outro, aos prantos, desesperados de alegria por estarmos juntos outra vez.
Eu tinha vinte anos e ele dezessete, quando morreu num acidente, e eu pranteara aquela perda até os quarenta. Ronnie fora um jovem tão intensamente cheio de vida que era impossível imaginá-lo morto. Eu nunca tinha conseguido acreditar que ele tivesse partido, durante todos aqueles anos. Com sua morte, eu deixara de ser confiante e resoluta para me tornar uma criatura perdida, pensando eu mesma na morte. Que laços vigorosos existiam entre nós!
Agora estávamos juntos outra vez, e nossa felicidade era tão avassaladora quanto fora a dor que eu sentira.
— Você não mudou nada — disse-lhe, por fim, olhando-o com admiração, entendendo por que nunca era capaz de assistir a um filme de James Dean sem chorar: o rosto do ator se assemelhava demais ao de meu irmão. — Como pode ter a mesma aparência depois de todo esse tempo?
— Ah, foi para que você me reconhecesse — riu Ronnie, o pensamento voltado para outras idéias que tivera para nosso reencontro. — Pensei em vir sob a forma de um cachorro velho ou algo parecido, mas… Bem, até eu percebi que não era hora de brincadeiras.
Brincadeiras. Eu é que tinha sido a pessoa séria, esforçada, determinada, inabalável. Ele havia concluído que nossa pobreza era tamanha, que de nada adiantaria lutar, e preferira o caminho do humor, rindo e pregando peças, enquanto eu me mostrava seriíssima, até ter, às vezes, vontade de esganá-lo. No entanto, Ronnie era simpático, engraçado, bonito, saía-se bem de qualquer situação. Todos o amavam, principalmente eu.
— Como vai mamãe? — perguntou.
Percebi que ele sabia, mas desejava ouvir de mim.
— Ela está bem, só que ainda sente saudades suas. Finalmente, aceitei o fato de você ter partido… há cerca de dez anos, acredita? Mas ela nunca conseguiu. Nunca.
Ronnie suspirou.
Tendo recusado a crer que ele estivesse morto, agora eu não conseguia acreditá-lo a meu lado. Que coisa extraordinária, estar com ele outra vez!
— Ah, tenho tantas coisas para lhe contar, tanto para perguntar…
— Não lhe falei que havia uma coisa extraordinária à sua espera? — intrometeu-se Hy, feliz por nós dois. Passou o braço em meu ombro, e o mesmo fez Ronnie. Abracei-os pela cintura, e nós três avançamos mais na direção da luz, enlaçados.
— Ronnie! Hy! Este é um dos dias mais felizes de minha vida!
— exclamei, novamente atordoada de alegria.
Vislumbrei então o que nos esperava adiante.
— Ah…!
Surgiu à nossa frente um vale maravilhoso. Um rio estreito reluzia entre campos e florestas, recobertos dos ouros e escarlates outonais. A distância, branquejavam cascatas de trezentos metros de altura, silenciosas. Era de tirar o fôlego, tal como da primeira vez que eu vira…
— O parque Yosemite? — perguntei.
— Sabemos que você adorou — concordou Hy —, de modo que imaginamos que gostaria de sentar aqui e conversar.
Achamos um arvoredo ensolarado e nos sentamos num tapete de folhas. Ficamos a olhar um para o outro, invadidos de pura alegria.
Por onde começar, pensei, por onde?
Uma outra parte de mim sabia e fez a pergunta que me perseguia havia anos.
— Ronnie, por quê? Sei que foi um acidente, sei que você não morreu deliberadamente. Mas estive aprendendo a respeito do quanto controlamos nossa vida, e não posso evitar pensar que, em algum nível, você preferiu partir quando aquilo aconteceu.
Ele respondeu como se já houvesse pensado no assunto tanto quanto eu.
— Foi uma escolha malfeita — disse, tranqüilo. — Eu achava que tinha começado tão mal naquela vida que jamais conseguiria torná-la melhor. Apesar de todas minhas brincadeiras, eu era uma alma carente, sabia disso? — Em seu rosto apontou o conhecido sorriso brincalhão, que usava para encobrir a tristeza.
— Acho que, no fundo, no fundo, eu sabia — respondi, sentindo o coração dilacerar-se outra vez —, e foi isso que nunca pude aceitar. Como podia se sentir infeliz, se todos o amávamos tanto?
— Eu não gostava de mim tanto quanto você, não achava que eu merecesse amor ou, aliás, qualquer outra coisa, Leslie. Ao olhar para o passado agora, sei que poderia ter levado uma vida feliz, mas na época eu não via isso. — Ronnie desviou o olhar. — Não que eu tenha saído de casa para me matar, você sabe, mas por outro lado, também não tentei viver com muito empenho. Não encarava a vida com o mesmo ardor que você. — Balançou a cabeça. — Escolha malfeita.
Estava mais sério do que eu jamais o vira. Como era estranho e maravilhoso ouvi-lo conversar daquela maneira. Em poucas palavras, dissipava-se a perplexidade e a dor de décadas inteiras.
Ele sorriu para mim, timidamente.
— Fiquei de olho em você. Durante algum tempo, julguei que viesse se juntar a mim logo, logo. Depois, vi você superar o sofrimento, percebi que eu também poderia ter feito aquilo, e desejei… bem, era uma vida dura. Eu devia ter enfrentado tudo de outro modo. Mas aprendi bastante. Desde então, tenho usado o que aprendi.
— Ficou de olho em mim? Você sabe o que vem acontecendo em minha vida? Sabe de Richard? — Emocionou-me imaginar que ele conhecesse meu marido, aquela pessoa tão sensacional.
Ronnie anuiu com a cabeça.
— Está tudo ótimo. Sinto-me feliz por você! Richard!
De repente, voltou o pânico. Como eu podia ficar sentada ali, daquele jeito? O que havia comigo?
— Ele está preocupado comigo, você sabe. Pensa que me perdeu, que perdemos um ao outro. Não posso ficar, por mais que eu ame vocês dois, não posso! Compreendem, não é mesmo? Preciso voltar para ele, mas agora sabemos que haveremos de nos rever…
— Leslie, Richard não poderá ver você — disse Hy.
— Por quê?
O que sabia ele, que coisa terrível eu não havia levado em conta? Que eu era agora o fantasma de um fantasma? Seria eu…
— Você está dizendo… está querendo dizer que estou realmente morta? Que isso não é uma agonia, que não posso decidir voltar, que estou morta! Nada posso fazer?
Hy assentiu. Parei, atordoada.
— Mas Ronnie esteve comigo, disse que ficou de olho em mim, que esteve lá o tempo todo…
— Mas você não podia vê-lo, podia? Você não sabia que ele estava lá.
— Às vezes, em sonhos…
— Em sonhos, é claro, mas…
Senti um súbito alívio — Ótimo!
— É esse tipo de casamento que você quer, Leslie? Richard a encontrará quando dormir e se esquecerá de você a cada manhã? Em vez de preparar-se para encontrá-lo quando ele vier para cá, para impressioná-lo com o que aprendeu, você prefere flutuar à volta dele sem ser vista?
— Hy, por tudo que conversamos sobre a morte e sobre superar a morte, a respeito de nossa missão juntos em outras existências… até onde ele sabe, eu morri num desastre de avião e isso foi o fim de tudo! Ele há de pensar que tudo aquilo em que crê está errado!
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