Meu velho amigo olhou-me com incredulidade. Por que ele não compreendia?
— Hy, nós fomos pobres, nós fomos solitários, suportamos momentos dificílimos, fomos tão maltratados que chegamos a imaginar por que insistíamos em viver. Por quê? Para ficarmos juntos. E ainda não tínhamos acabado! É como escrever um livro e abandoná-lo no meio de uma palavra, no meio do capítulo 17 de um livro de 24 capítulos. Não se larga tudo simplesmente e se faz de conta que o livro acabou! Vamos permitir que ele seja publicado, uma coisa inútil, sem fim? Recuso-me a aceitar isso.
“E aí chega um leitor que deseja descobrir o que foi que aprendemos, deseja ver com que criatividade, com que coragem, utilizamos o que sabíamos para vencer os desafios que nos foram impostos, e no meio do livro o texto acaba e vem uma nota do editor: Nesse ponto o hidravião acidentou-se, e ela morreu, de modo que o livro ficou por terminar.
— A vida da maioria das pessoas não chega a terminar. A minha, por exemplo — disse Hy.
— Tem toda razão! — retruquei. — Nesse caso, você sabe qual é a sensação. Não vamos abandonar nossa história no meio!
Hy sorriu, calidamente.
— Você quer que sua história diga que depois do acidente Leslie voltou dos mortos e que viveram felizes para sempre?
— Não seria o pior trecho de toda a literatura. — Todos rimos.
— É claro que eu gostaria que o livro contasse como foi que fizemos isso, explicasse os princípios que empregamos, para que alguma outra pessoa pudesse fazer o mesmo.
Essas palavras tinham sido pronunciadas como brincadeira, mas de repente ocorreu-me que aquilo poderia ser mais um teste, mais um dos desafios do desenho!
— Escute, Hy — falei —, Richard tem tido razão a respeito de muitas coisas que, à primeira vista, parecem loucura. Você conhece a “lei cósmica” dele, a respeito de enfocar as coisas no pensamento e fazer com que se concretizem. Por acaso a lei cósmica mudou de repente, porque nos acidentamos? De um momento para o outro, será possível que eu focalize alguma coisa no pensamento, uma coisa tão importante, e que essa coisa não aconteça? — Percebi que ele começava a ceder.
Hy sorriu.
— As leis cósmicas não mudam. Apertei-lhe a mão.
— Por um momento, tive a impressão de que você ia tentar me deter.
— Ninguém na terra teve força para deter Leslie Parrish. O que a faz pensar que alguém consiga fazê-lo aqui?
Levantamo-nos, e Hy deu-me um abraço de despedida.
— Estou curioso. Se fosse Richard que tivesse morrido, e não você, Leslie, você teria permitido que ele se fosse, teria confiado em que ele estaria bem durante todo o tempo que fosse necessário para você terminar sua própria vida?
— Não. Eu meteria uma bala na cabeça. — Cabeça-dura… — comentou ele.
— Sei que não faz sentido. Nada faz sentido, mas preciso voltar para ele. Não posso deixá-lo, Hy. Eu o amo!
— Eu sei. E lá vai você…
Virei-me para Ronnie. Meu precioso irmão e eu nos apertamos com força e em silêncio. Como era difícil afastar-me dele!
— Eu o amo — falei, mordendo o lábio para não chorar, e recuando. — Amo vocês dois. Sempre amarei vocês. E vamos nos reencontrar, não é mesmo?
— Você sabe que sim — disse Ronnie. — Vai morrer e sair à procura de seu irmão de novo, e quando vir um cachorro velho…
Tive de rir, apesar das lágrimas.
— Nós também a amamos — falou.
Eu jamais imaginara que aquele dia pudesse acontecer. Apesar de meu ceticismo, sempre acreditara que Richard tivesse razão, que houvesse no universo mais de uma vida. Agora eu sabia. Agora, com o que eu havia aprendido no desenho e com a morte, afastava-me dali sabendo com certeza. Sabia também que um dia nós entraríamos juntos naquele fulgor maravilhoso. Mas não agora.
Voltar à vida não foi impossível, sequer chegou a ser difícil.
Uma vez ultrapassada a muralha que pressupõe que jamais nos atrevemos ao impossível, avistei o desenho na tapeçaria, tal como Pye havia dito. Fio por fio, passo a passo! Eu não estava retornando à vida, estava regressando a um foco da forma, e a forma é um foco que modificamos a cada dia.
Encontrei meu querido Richard num mundo alternativo que, por uma razão ou por outra, ele tomara como real. Estava atirado no chão, sobre minha sepultura. Sua dor era concreta como se fosse uma cúpula de cristal que o envolvesse; não estava mais propenso a me escutar do que estaria para um jantar de cerimônia ou para conversa fiada.
Fiz força contra a cúpula.
— Richard.
Nada.
— Richard, estou aqui!
Ele soluçava, encostado na lápide. Não havíamos combinado que nada de lápides?
— Querido, estou com você neste mesmo momento em que você está chorando no chão, estarei com você quando adormecer e quando acordar. Tudo que nos separa é a sua convicção de que estamos separados!
Flores silvestres sobre o túmulo diziam-lhe que a vida recobre o próprio local no qual a morte é só aparência, mas ele não lhes escutava a mensagem, nem a minha.
Por fim, ele se arrastou, mortificado, na direção da casa, carregando consigo sua cúpula de aflição, um cárcere móvel. Não se deu conta do ocaso, que lhe bradava que o que se assemelha à noite é o mundo aprestando-se para um alvorecer já existente, e jogou o saco de dormir no tablado.
Quantos gritos pode um homem recusar-se a ouvir? Sena aquele homem meu marido, meu querido Richard, convicto de que nada acontece por acaso, da queda de uma folha até o nascimento de uma galáxia? Clamando de angústia em seu saco de dormir, sob as estrelas?
— Richard; — chamei. — Você tem razão. Teve razão todo o tempo! O acidente não ocorreu por acaso, morrer não é uma tragédia!
Perspectiva! Você já sabe tudo de que necessita para que nos reunamos outra vez. Lembra-se? Focalize. Não estamos terminados, nossa história não se acabou. Nós temos… tanto… por que… viver. Você pode! Mudei A moral Meu querido Richard. AGORA!
A cúpula de cristal sobre ele estremeceu, rachou nos cantos.
Fechei os olhos, focalizei com todo meu ser. Nenhuma dor, nenhum sofrimento, nenhuma separação. Pensei em nós dois na carlinga intacta do Growly, flutuando sobre o desenho, senti que voávamos juntos.
Ele sentiu a mesma coisa! Fez força para empurrar o manete!
Tinha os olhos fechados, e cada uma das fibras de seu corpo fremiu de encontro àquela simples alavanca. Eu ansiava por poder colocar minha mão sobre a dele, facilitar aquela tarefa para ele tão difícil.
Como se tivesse estado hipnotizado e saísse do transe, agora, por pura força de vontade, ele se crispou, jogou toda sua energia contra as próprias convicções, que se curvaram meio centímetro. Um centímetro.
Meu coração quase se rompia com o dele. Acrescentei minhas forças às suas.
— Meu querido! Não estou morta, jamais estive! Estou com você neste momento! Estamos juntos!
O cristal despedaçou-se em volta dele, fragmentando-se. O motor do Growly girou, pegou. Os ponteiros dos instrumentos mexeram-se ligeiramente.
Richard prendia a respiração, as veias pulsando em seu pescoço, em seu rosto. Tinha a expressão fechada, lutando por modificar o que havia tomado como a verdade. Ele recusava o acidente. Apesar de todos os indícios ao contrário, ele rejeitava minha morte.
— Richie! — gritei para ele. — É verdade! Por favor, é, sim! Nós podemos voar! Ainda!
E então o manete cedeu, o giro do motor transformou-se num trovão, uma cortina de água levantou-se sob nós.
Que maravilha vê-lo! Seus olhos se abriram no momento em que o Growly deixou a água.
Ouvi, finalmente, sua voz num mundo que partilhávamos outra vez.
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