Valéria : Como Silvia Lane e Martin Baró entram nesse processo de formação na PUC?
Ana : Então, a Silvia era uma professora de Psicologia Social. Quando terminei a minha monitoria, em comportamental, eu estava no segundo ou no terceiro ano. Depois disso, eu saí dessa monitoria e fui pra monitoria de Psicologia Social, em que acompanhei a Silvia Lane. Eu fiquei muito tempo com a Silvia, porque ela foi minha professora, mas, como monitora, foi durante pouco tempo, porque ela foi convidada para abrir uma pós-graduação em Psicologia Social. Assim, ela foi embora pra pós. Mas eu fiquei com a equipe dela, com a qual eu passei a trabalhar. Mais pra frente eu iria me matricular na pós-graduação como aluna dela. A Silvia foi uma diretora muito interessante, muito inquieta. Ela fazia questão de produzir uma inquietação no curso. Nesse sentido, eu me lembro de ter sido representante dos alunos no conselho departamental. Ela sempre queria nos desafiar, ela desafiava aquele coletivo a pensar alguma coisa diferente no curso. Por isso, ela foi, de certa forma, a idealizadora dos núcleos. Eu diria até que a gente poderia dizer que ela efetivamente foi essa idealizadora, porque ela tinha a preocupação de que a prática dos estágios fosse sempre acompanhada pela reflexão teórica. Assim, ela trouxe essa preocupação e é o conjunto desses professores e alunos que vai inventar o que até hoje existe na PUC: trata-se dos núcleos, que consistem num estágio que você faz na instituição, acompanhado de disciplinas teóricas que subsidiam, que refletem, que questionam aquela prática. Nunca é uma prática solta. Muitos cursos têm os estágios soltos, isto é: depois que você fez todas as disciplinas teóricas, você faz o estágio. A PUC não. Ali, o estágio é acompanhado de disciplinas teóricas: são três, quatro disciplinas teóricas que o acompanham. E isso vem da preocupação da Silvia com essa ideia de que a prática nunca podia estar solta, porque o estágio não deveria ser pensado como uma aplicação da técnica, né?
Valéria : E você percebe essa não dissociação do estágio com as disciplinas no curso da PUC ainda no momento atual?
Ana : Então, eu diria pra você que eu percebo essa tendência ali até hoje, mas como concepção. Isso não quer dizer que ali se configure o espaço de um núcleo, onde as disciplinas teóricas estão rodeando a prática, proporcionado efetivamente essa integração. Mas os professores mais antigos sabem disso. Os professores se preocupam com isso, os alunos cobram isso, porque é apresentado para eles que aquelas disciplinas teóricas deverão subsidiar a prática, tanto do ponto de vista técnico quanto da reflexão crítica. Então, os alunos cobram isso dos chamados núcleos. E até hoje isso funciona desse modo: quando você apresenta a proposta de um núcleo, é preciso mostrar uma ação existente entre a prática de estágio que você está oferecendo e as disciplinas teóricas que você está propondo. Então, a Silvia está na origem disso, porque ela tomava a ideia de práxis como uma ideia central. E isso é algo que ela, como diretora, vai incentivar, produzindo ali com aquele conjunto o que poderia ser o formato. Quando os núcleos se instalam, ela já não é mais a diretora, mas o trabalho dela estava na origem disso tudo. Estamos falando, portanto, de um período – esses anos de 1970 até 1975 – que tem o curso velho, que é o meu, e o curso novo, reformado, que tinha que ser pensado, instalado. Porque além do desafio de se pensar um curso novo, havia o de integrar o Sedes Sapientiae bem como o curso que vinha dele, que virava faculdade de Psicologia, sob o comando da Madre Cristina. Ela já tinha uma perspectiva crítica e trabalhava muito na clínica, mas carregava aquela preocupação de como fazer uma clínica para a população. Se junto isso com a perspectiva dos behavioristas –que, na PUC sempre foram behavioristas muito críticos, behavioristas de esquerda–, isso tudo forma um caldo fantástico, resultando numa inovação muito positiva para o curso. A isso tudo ainda se junta outra força positiva, progressista, que era a que vinha da Igreja. A PUC tem como um de seus cursos obrigatórios, que já passou por vários nomes, uma disciplina de Introdução ao Pensamento Teológico (acho que esse é o seu nome atual). Na época, chamava-se Problemas Filosóficos e Teológicos do Homem Contemporâneo, abrangendo um grupo que não era obrigatoriamente constituído de padres, pois havia inclusive mulheres, filósofas, além do Mário Sérgio Cortela e da Terezinha Rios, que trabalhavam nessa disciplina. Desse modo, havia toda a influência do pensamento progressista que a Igreja alimentava naquele momento. O setor mais conservador que a gente tinha ali era a Psicologia Organizacional e do Trabalho, que contava com professores mais críticos, mas que, em seu formato, era conservadora. Enfim, nós tínhamos uma formação bastante inquieta, bastante questionadora. O próprio ambiente da universidade era um ambiente que ajudava. Por isso, eu sempre digo: meu curso foi muito bom, mas a minha universidade foi muito melhor! Porque eu fiz teatro, eu fiz coral, eu participei do movimento estudantil, eu participei da fundação do centro acadêmico de Psicologia. Nós tínhamos uma atuação de todos os estudantes da universidade, o que formou um fórum de articulação dos estudantes dos vários cursos. O único que não participava era o centro acadêmico do curso de Direito, que era de direita, mas ainda assim participavam os estudantes de esquerda daquela faculdade. Então, tínhamos um grupo assim, bastante diversificado, de estudantes de vários cursos que faziam um movimento estudantil. E como o movimento estudantil era muito cerceado, muito visado e eu era mais ingênua...
Valéria : Mais ingênua como, Ana?
Ana : Já volto a esse ponto. A liderança desse movimento entendeu que tinha que disfarçar o movimento estudantil, então ela abriu o curso de teatro e o coral, sendo nesses espaços que a gente fazia discussão política. Eu era ingênua, porque tinha dezessete anos quando entrei na faculdade (faço aniversário em julho, no final de julho. Então, fiquei um semestre com dezessete anos). Assim, eu era ingênua. Eu vinha da escola pública, do ensino do clássico. E era muito estudiosa, aquele modo de ser colegial.
Apesar de a minha família ter até um certo nível de compreensão, de participação política (porque eu tinha amigos da minha mãe que eram perseguidos políticos, por exemplo um tio na Bahia e a esposa de um amigo dela que também era perseguido político e a quem a minha mãe escondeu) e como eu era jovem, a gente não era muito informado a respeito disso tudo, até porque era perigoso. Então, eu entro na universidade sem saber o que acontecia nesse país. Meu pai falava dos generais, o diabo. Mas assim, sem muita possiblidade de análise ou de compreensão disso. Quando eu entrei na universidade, não se discutia absolutamente nada disso, se discutia Psicologia. A Psicologia era muito fechada (ou eu não escutava, não tinha condições de escutar o que se podia falar, mesmo que disfarçadamente). Eu fui muito infeliz no primeiro ano do meu curso, eu não via a hora de voltar pra casa, eu odiava a PUC, eu achava tudo ruim, eu chorava, eu chegava em casa e chorava. E minha mãe me disse: “Mas não tem lá na universidade um coral, uma coisa pra você entrar? As universidades têm times. E se você jogar alguma coisa?” E eu então vi um dia lá, em 1972, quando estava no terceiro ano, uma placa em que se lia “Coral na Universidade Católica”. E eu fui lá e me inscrevi pra entrar no coral. E não percebi de imediato que o coral era um lugar de trabalho político das lideranças. Lá, eles me convidaram também para o grupo de teatro; eu fui para ambos e adorava. Comecei a adorar a viver na universidade, arranjei amigos, arranjei um marido. O Silvio era do centro acadêmico e era do curso de Pedagogia. Fizemos teatro juntos (ele era desse grupo). E eu tinha muitos amigos, meus amigos até hoje são feitos quase todos na universidade. Mas eu era bastante ingênua, eu tinha dificuldade de compreender do que se falava, então eu fiz um treinamento intensivo para em dois anos estar à frente do grupo que criou o centro acadêmico de Psicologia. Eu fui do grupo que fundou o centro acadêmico de Psicologia da Faculdade de Psicologia da PUC. Mas enfim: essa é que era a minha ingenuidade. Era ingênua porque eu não tinha discussão política acumulada, eu não participava de partido político. Eu só fui entrar em um partido clandestino no meu último ano de universidade. Nesse momento, passeia fazer parte de um partido que se chamava Liga Operária, e que depois vai se tornar a Convergência Socialista e, mais adiante, o PSTU, mas já não faço mais parte dele. E isso mudou a minha vida, mudou a minha vida! Porque eu passei a ser uma aluna cri-cri. Eu não aceitava qualquer coisa que se dissesse, eu achava a Psicologia reacionária, eu achava que a gente não tinha uma perspectiva teórica crítica da Psicologia. Claro, isso eu estou falando com as minhas palavras de hoje. Naturalmente, naquele meio em que isso ia se formando, haviatodo um grupo comigo, que foi me ajudando e, ao mesmo tempo, eu fui buscando uma formação que pudesse me inserir de outro jeito na Psicologia. Então, na altura em que me formei, em 1975-1976, eu já era professora. Aliás, eu já era professora desde 1974, porque me tornei bacharel antes, já reunindo condições para dar aula. E a equipe de Social, onde eu era monitora, me convidou em 1974 para ser professora da equipe de Social na UNIP, que na época chamava Objetivo. É nesse momento que eu viro professora. Quando fui fazer Psicologia, eu não almejava me tornar professora, eu não queria ser professora. Queria ser clínica, qualquer coisa, menos professora. E, como eu era monitora, a oportunidade que me aparece é que a equipe me chama pra ser professora. Fui professora da equipe e assim, depois que tive essa oportunidade, eu me formei e ingressei como professora na PUC de SP, isso em agosto de 1976.
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